Um blog livre, aberto e despretensioso de resenhas caseiras, discussões acerca de... qualquer merda, na verdade...

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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Um Ninho Para Estranhos

     Acabo de ver o  (aproveitando o clima dos últimos dias) ganhador de Oscar(es) "Um Estranho no Ninho" ou, em seu título original e, cá entre nós, muito melhor, "One Flew Over the Cuckoo's Nest" (Um [ou "Alguém"] voou sobre o ninho de cucos [aquele pássaro, serve como analogia para maluco... ah, vocês entenderam]). Impossível para mim, estudante de Ciências Sociais e com irmã psicóloga, separar o filme do discurso antimanicomial que ronda este universo e que, aliás, celebra seu dia em 18 de maio. Dito isto, vou comentar misturando elementos do filme com minhas experiência pessoais. Espero que a lambança não seja demasiada.



   

O Personagem Principal



    Jack Nicholson é Randle McMurphy, detento que se faz de louco para ir terminar sua sentença no manicômio. Agora, na primeira cena de Randle com os pacientes já sacamos o que vem por aí... o cara chega, muda a porra toda, não sei o quê... É, é basicamente isso que acontece... a fórmula é antiga (mas, pensando bem, o filme também é), mas isso não estraga o filme... O grande diferencial de Randle no manicômio não era sua saúde mental perfeita, mas sua rebeldia anárquica e cheia de vida. Ao longo do filme, vemos essa vida se refletindo nos outros personagens e produzindo a mudança de comportamento, talvez não da instituição, mas pelo menos dos pacientes. Randle McMurphy é o personagem que rendeu ao Jack Nicholson o Oscar de melhor ator... ou talvez seja Jack Nicholson que tenha rendido a Randle McMurphy tamanho... bom... tamanho como personagem... a questão é que por mais que Randle seja um personagem manjado na história do cinema e da literatura, ele é diferente. Honestamente não sei o porque disso, talvez seja o sorriso de maníaco do Jack Nicholson ou talvez seja a doçura com que Randle acaba tratando seus amigos e companheiros de hospício, um carinho velado e ao mesmo tempo muito aparente... sei lá... mas tem algo a mais.


O Manicômio


     Quando fui à minha primeira manifestação do dia da luta antimanicomial no ano passado, saí de lá muito diferente. Foi na Praça XV, onde diversos grupos estavam mostrando ou fazendo algum trabalho. Minha irmã e o namorado estavam lá, minha irmã fazendo trabalhos de mosaico com alguns pacientes e quem mais quisesse participar. Falando em pacientes, a presença deles marcou uma mudança bem grande no modelo de manifestação política que eu via desde o início do ano... veja, acontece que antes e depois de entrar na faculdade, eu participei de muitas manifestações e a cada uma crescia a decepção... era ridículo como os supostos interessados dos protestos não estavam nunca presentes... a questão aqui não é a "alienação" deles, mas a pretensão de partidos e jovens universitários de quererem representar alguém que não pediu para ser representado... era frustrante como falavam em nome de tanta gente que sequer os conhecem, muito menos reconhecem. Aí aparece o dia da luta antimanicomial, quando terapeutas e administradores e pacientes manifestam-se juntos em um evento cheio de atividades de integração entre os que estão de fora e os que estão de dentro da questão, há demonstrações dos trabalhos desenvolvidos por grupos e tal, instrução, etc... nada de um homem de partido berrando no megafone frases de protesto incompreensíveis se isoladas, costas viradas para a população... Não... se no protesto das barcas eu não vi nenhum trabalhador deixando de ir trabalhar para se juntar à manifestação, neste eu via dezenas de passantes parando para ver o que era tudo aquilo.
18 de maio (Dia da Luta Antimanicomial) 2012 na Praça XV

     Em um momento, um telão começou a passar um videoclipe de uma música feita pelos pacientes de um certo grupo (acho que era o CAPS da UERJ, mas não posso confirmar). Os psicólogos tocavam os instrumentos e os pacientes cantavam. Esses mesmos pacientes se encontravam lá no evento e, enquanto passavam o vídeo, eles cantavam junto. Nunca vi um grupo de pessoas mais feliz... isso mexeu comigo... imaginei o orgulho que todos eles sentiam de fazer parte disso, desse acontecimento, dessa conquista. Eles haviam feito aquilo e fizeram com o próprio suor. Isso mostra que eles tinham (e tem) capacidade, é a autoconfiança que eles precisam para se integrar na sociedade... e afinal, imagino ser esta a função da saúde psicológica, fazer a integração do paciente na sociedade, para que ele possa ter uma vida, se não normal (no sentido que é dado mais comumente), ao menos saudável, com as implicações que tal palavra traz. A esse propósito, estabelecer uma "função" ou ao menos uma "funcionalidade" ao paciente faria parte do processo de integração.

     Tudo isto se encontra presente no filme, mas de forma inversa. Como se passa num manicômio, as críticas feitas ao sistema manicomial de tratamento são incorporadas às atividades na forma de orientação. Assim, vemos claramente e, em primeiro lugar, o distanciamento do médico com o paciente. Não lembro de cena que mais demonstre isto do que a que a enfermeira, ao se deparar com Randle na sala privada berra "STAY BACK!" em claro horror e medo. Não só há o distanciamento entre os dois atores da relação - o terapeuta e o paciente - há também a desumanização de um de forma que o tratamento se diferenciará completamente do que seria dado a uma "pessoa normal". Por isso o medo da enfermeira. Não se sabe do que aquele ser é capaz, não se dá uma humanidade para ele, sua identidade permanece apenas e somente como "o doente mental". O isolamento deste "doente" é talvez a mais frustrante e alarmante característica deste símbolo manicomial. Como pode o paciente ser reintegrado à sociedade se ele é tratado como algo externo a ela? Justamente aquilo que se evita fazer é o que se faz e somente aquilo. Uma vez que o espectador percebe - como percebe Randle, após saber que só através do aval médico ele sairá de lá - que os pacientes se encontram num ciclo vicioso de reafirmação da psicopatologia e isolamento social através do próprio tratamento, que os pacientes nunca sairão do manicômio, mesmo aqueles que estão lá voluntariamente, pois a ideia da psicopatologia e da sociedade como algo externo a eles ("Não estou pronto ainda", disse Billy) já são ideias que estão enraizadas neles próprios e não apenas na instituição manicomial... uma vez que o espectador percebe isso, instala-se o desejo de fuga. Bom... pelo menos comigo isso rolou... precisava que aquelas pessoas saíssem dali.

     Creio que a cena mais simbólica deste processo de encarceramento psicopatológico dentro do manicômio seja uma do Billy que, após uma noite com uma moça, sua gagueira - manifestação física de algum trauma psicológico ou seja lá o que for que despertava sua depressão e vontade suicida - tinha sumido. Com o confronto da enfermeira Ratched, - a puta mais desgraçada que já vi no cinema - sua gagueira retorna e... bem... o resto é história... Claro que Ratched filhadaputamente usou o gatilho depressivo do Billy (a mãe dele - eu sei, eu sei... cliché) contra ele ao invés de reconhecer a melhora do paciente. Isso porquê, claro, ela colocava a moral pessoal acima do profissionalismo e etc... e era uma megera odiável. Mas a questão é a melhora do paciente não ser a prioridade ou acho que nem isso... não ser sequer reconhecível através do processo manicomial.

     O entorpecimento contínuo com o uso de remédios e tratamentos de choque e a fatal lobotomia são modos de berrar, eu disse BERRAR que a psicopatologia é incurável (uma vez louco...) e que o paciente deixou de ser paciente no momento em que entrou na instituição, que não é nada além de uma instituição carcerária, onde, mais que isso, os internos são tratados como completos inúteis, incapazes de fazer nada, completamente desencorajados a se expressarem... Mais do que um cárcere físico, o manicômio representa uma prisão da alma, e é nesse estado morto dos pacientes que Randle chega lá.


O Antimanicômio


     Randle McMurphy é o transgressor... aquele que acabará com a ordem manicomial e questionará suas práticas. Desde sua chegada, quando dado o remédio (sem nem ao menos ter recebido um diagnóstico objetivo antes! - ele estava sob observação), ele pergunta o que é. Sem responder à pergunta, a enfermeira apenas ameaça fazê-lo tomar o remédio à força. É claro que ele não toma, guarda o remédio na boca e faz piada disso.
     Randle, o anárquico cheio de vida acaba, mesmo que sem querer, mesmo que só visando seus próprios objetivos, contagiando o resto dos pacientes com sua vida e jeito enérgico de ser. Os pacientes, como Randle, começam a questionar o tratamento dado a eles. Se não saem completamente da norma manicomial, ao menos iniciam um processo visando isso... Talvez Billy Bibbit tenha sido, com exceção do Chefe (chegaremos lá), quem mais se aproximou da possibilidade de "cura" (ou ao menos de aprender a lidar com o sei lá como se chama que ele tem) através do "processo antimanicomial" liderado por Randle. Claro que quando Billy chegou lá, para a frustração geral, a enfermeira Ratched interveio. 

     O que Randle fazia era sim, no fim das contas, uma via de terapia alternativa ao manicômio. Isso se expressa bem em um questionamento feito por um dos pacientes (não me lembro qual). Ele pergunta se assistir ao jogo de baseball não poderia ser considerado também uma forma de terapia. É ousado! E corretíssimo! É sobre isso que o discurso de inserção na sociedade se basearia, eu acredito, na... bem... na inserção na sociedade! Como pode um americano não assistir a um jogo de baseball? Quer dizer, ser privado disto?! É como um brasileiro ser privado de ver futebol. Como pode alguém ser privado de algo que é fundamental naquilo onde quer ser inserido? Acho que vai além, como pode alguém ser privado de uma experiência tão básica? A questão aqui é aquela já explicitada: não separar o paciente da sociedade! Não isolar o indivíduo em tratamento! A interação de Randle com o resto dos personagens cria uma certa teia de afinidade dentro do hospital. As relações pessoais passam a ser mais intensas, as interações mais afetuosas... em resumo... Randle contagia cada um ali com sua intensidade. Vê-se a vida presente neles, a ideia de liberdade e de paixão e Randle McMurphy tornara-se o símbolo disto tudo, era ele quem havia trazido esta nova perspectiva - se é que havia outra antes. 

     É o método de terapia que Randle aplicava (inconscientemente, claro) que bota em julgo o modo de ser do manicômio, de dentro para fora. Este que representa este espírito antimanicomial que transformou os pacientes e, de uma forma ou de outra, o próprio hospital psiquiátrico, mesmo que, novamente, a instituição tenha se mantido inalterada. Tem uma cena muito interessante que se passa quando eles sobem em um barco no cais. Para se apresentar, eles tomam o papel de doutores. Essa inversão de papéis, de função e, mais importante, de hierarquia, mostra a ordem manicomial subjugada pelo espírito antimanicomial subversivo.


O Chefe Bromden


     Brilhantemente interpretado por Will Sampson, este personagem por si só já merece uma seção só dele. O Chefe é um imenso índio surdo e mudo (que revela alguns segredos após estabelecer uma silenciosa amizade com o protagonista). É ele, na minha opinião, o fio fundamental do filme, aquele que conduz o andamento das coisas e, secretamente, um protagonista nas sombras de... bem... de todo o resto. O Chefe é a timidez e a impotência presentes num potencial imenso. É a autoestima encolhida de um corpo enorme. Ele representa o indivíduo no manicômio e seu processo de libertação pode muito bem ser extendido a todos os outros pacientes, só que de forma diferente. Acompanhamos seu... desabrochar (perdoe a péssima utilização da palavra) ao longo do filme, de um poste, uma cenografia enorme, até um personagem bastante relevante, que conseguimos nos relacionar e simpatizar, até a cena final do filme, cheia de simbolismos e que representa muito no universo da trama. Bom... pra mim, pelo menos... 
      O Chefe será o espírito daquele manicômio e quando ele diz que já está grande o suficiente, é porque os demais pacientes também se sentem mais dispostos. Randle ajudou o chefe a interagir, deu confiança a ele, assim como fez com o restante dos internos... 
     
     E isso nos leva ao título do post... com o isolamento dado aos pacientes, eles se tornam estranhos a qualquer outra coisa, são estrangeiros ao mundo e é justamente este outro estrangeiro, este recém-chegado que não consegue se adaptar ao mundo externo (fora preso diversas vezes!) que transforma este inferno, este presídio da alma, em um ninho... é ele que consegue trazer conforto, acalento, pertencimento aos internos e por isso "um ninho para estranhos"... porque aqueles que eram tidos como algo diferente, se encontraram em algo que poderia ser tido como deles e... semelhante... que os aceitasse...
     

     Ok, se até agora não dei nenhum grande spoiler, é aqui que começa. Você que não viu o filme pare de ler ou continue, mas foi avisado! 


O Fim


     E é assim que matam Randle. Após o suicídio de Billy pelas mãos da enfermeira Ratched, após o ataque (extremamente justificado) de Randle à mesma, realizam uma lobotomia nele, o "diminuem", o anulam, o matam. E é por isso que o Chefe, agora grande, forte, confiante, graças ao seu amigo, o sufoca. O Chefe dá-lhe a liberdade, assim como o faz com os demais na cena final do filme, ao libertar a si mesmo. Pois se é ele o grande fio condutor, o grande espírito e alma daquele hospital, sua liberdade representa a liberdade dos outros. A forma como olham animados a fuga do Chefe, a forma como, apesar da morte de Randle (e, se eles ainda não sabiam, ao menos do sumiço dele), a esperança continua (ou voltara) a brilhar em seus olhos... A mudança estava feita e essa era a prova maior disto. Os pássaros, os cucos, estavam prontos, já podiam voar do ninho.






Deixo aqui meu respeito e admiração pelo ator Will Sampson. Que, assim como seu personagem, ele tenha encontrado a liberdade depois da janela.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

"... mas que não seja nem velha, nem virgem, por favor"

   Todo homem que já se apaixonou sabe como é olhar entrando no ônibus, ou dançando tímida no canto do bar, ou quem sabe na fila do mercado aquela mulher linda, aquela sabe, que se encaixa em todos os seus padrões e, como um exímio exemplar do tal bicho homem, pensar "ahhh se eu pudesse comer ela..."  

   E é por isso que vos falo que o Velhas Virgens é, no meu ver, uma das maiores bandas de rock brasileiras  hoje em dia. Com mais de 20 anos de carreira pregando o bom e velho machismo saudável. Moças por favor não me entendam mal, estou a falar do orgulho de nossa testosterona, a sinceridade que falta hoje em dia na ditadura do politicamente correto.
    Suas músicas tratam de bebida, mulher, sexo e bebida quase que exclusivamente, sempre com bom humor e embalados por guitarras distorcidas, o verdadeiro rock'n roll. Eles não medem escrúpulos ao falar em suas músicas o que todos nós pensamos, mesmo que sem colocar em prática no nosso dia a dia. 
Eles são a banda perfeita para se embebedar com os amigos no final de semana, falando baixaria e se comportando como os machos que não somos em nossos cotidianos. Entendam, não estou advogando contra os bons modos, a fidelidade, o respeito às mulheres nem contra vossos fígados, estou apenas falando sobre o orgulho dos culhões que temos e - aparentemente - não lembramos. 
   Que embebedemo-nos, falemos baixaria e expressemos nossa virilidade que escondemos atrás de calças jeans, roupas lavadas e passadas e bons modos exagerados.  E que façamos tudo isso ao som do bom e velho rock dos Velhas Virgens, o som libertário para o homem tosco que existe dentro de todos nós, "homens modernos".
   

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Minha primeira vez


    Grande, forte, imponente ele fica ali, quieto no canto esperando para me consumir. Para ocupar minhas tardes, minhas noites, meus sábados e domingos até o sol nascer. Não existe contato, ainda imaculado nosso relacionamento já é tenso. Sou capaz de imaginar seus olhares de reprovação toda vez que eu tentar sair, mesmo que só para encontrar com um amigo. Conheço sua fama e sei muito bem que ele é traiçoeiro e já levou muito aos limites da sanidade com seus problemas sem solução. 

    Mesmo possessivo é como nenhum outro, o prazer de te-lo em mãos é indescritível. É uma relação conturbada, eu sei, já fui alertado que ele não se dará por satisfeito até estar presente em cada pequena porção de minha vida. 
    Me imagino mergulhando em seu oceano mesmo sem saber nadar. Me debatendo em desespero até a exaustão na esperança de que, em algum momento, minhas braçadas façam um algum sentido. Superando suas ondas e tentativas de me vencer sonho como o dia em que superarei todos os seus limites. Vou erguer a cabeça orgulhoso do meu feito, um dia...
    Por enquanto somos desconhecidos, tímidos, e, entre um olhar e outro a intimidade vai se criando o medo e a ansiedade caminham juntas mas eu sei que, cedo ou tarde, acontecerá... Recém-adquirido meu primeiro livro de calculo descansa em minha cama mas eu ainda não tive coragem de tira-lo de lá. Só quem já passou por essa experiência pode entender o turbilhão de emoções que é!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Sobre escrever

O livro em questão é A Arte de Escrever, o autor é Schopenhauer. Começo essa resenha consciente da improvável ocasião de que alguém tenha lido esse livro. Desde já deixo clara minha opinião... O livro é bom pra cacete. De fato, são raras as obras que conheço que abordam com tanta profundidade e clareza o ato de escrever. Se você se interessa por isto, por ler ou por qualquer forma de criação artística e não se importa com as ocasionais alfinetadas e críticas sarcásticas de Schopenhauer à elite erudita alemã, recomendo fortemente a obra. Schopenhauer aborda tais temas com a mais sublime atitude carrancuda e pessimismo característicos, passando por trechos interessantes sobre modinhas literárias e até o papel dos escritores de resenha na literatura! Acredita nisso? Nem sabia que escritores de resenha tinham um papel na literatura ou um papel qualquer pra ser sincero. O escritor caracteriza estes e os críticos literários como aqueles com a função de praticar uma censura positiva, embarreirando as obras literárias mal escritas e guiando o povo às obras bem feitas. Diz ele que na realidade o que acontece é o contrário, e os críticos vivem em um pacto silencioso com os "escritores charlatões" com o vil objetivo de ganhar dinheiro às custas da "ignorância do povo" ( expressões em aspas foram cunhadas pelo filósofo). Mas enfim, o que realmente me fascinou e o que acredito que seja o ponto central do livro é a importância do pensar por si. Tal importância já foi dita inúmeras vezes e é vítima de banalização por gloriosos clichês, porém não perdeu seu valor. Schopenhauer expõe, brilhante e categoricamente, a beleza de pensar por si mesmo. A beleza de moldar o espírito e o intelecto com as próprias mãos. O autor adverte-nos a respeito da leitura excessiva como forma de obtenção massiva de informação, julgando esta capaz de "enrijecer o espírito". Esse trecho em particular chamou minha atenção e me levou a pensar. De que nos vale empaturrar-nos de todas as letras, versos, filmes, séries e etc. se o fizermos simplesmente como depósitos ocos? A leitura, quando desacompanhada do pensamento crítico e ativo, é prejudicial. Devo confessar que atingi altos níveis de empolgação e êxtase ao ler tais trechos. Logo que o fiz, fechei o livro. É fascinante a capacidade que as boas obras tem de nos incomodar. Ao abordar o ato de escrever, Schopenhauer cunhou uma das frases mais espetaculares que já vi: "O estilo é a fisionomia do espírito". O estilo em questão é o estilo de escrita e o espírito é o conjunto de intelecto e criatividade. Segundo o filósofo, ao escrever o autor imprime no que diz a fisionomia de seu espírito. Porém, o que me chamou mesmo atenção, e o que concluo da leitura dessa brilhante obra é a faculdade humana de criar. Quando criamos, imprimimos em papel, filme ou seja lá o que for, uma amostra crua de nossa alma. Ao escrever, filmar e o escambal, refinamos essa amostra e a tornamos compreensível. E então, começa a briga. Brigar pra entender, perscrutar, dissecar cada parte de uma criação literária ou de qualquer natureza. Schopenhauer renovou minha atenção para a beleza de pensar  por si, destruir conceitos, construir de novo, duvidar de si e depois concordar, só pra no final de tudo, pegar o que resultou e expressar. Isso, em minha tosca opinião, é arte.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

From Dusk till Dawn.




- Um drink para todos, eu pago! – E dizendo isso, bateu com a mão ébria na mesa de madeira que dançava ao ritmo dos nervosos pontapés do outro.

- Só temos nós dois aqui, não faça papel de idiota. – Acendeu um cigarro amassado com as mãos, isolando-o da realidade até o fogo engolir sua ponta e sussurrou – Como se você fizesse o que eu digo. – tamborilou com os dedos aracnídeos sobre a mesa surrada na sinfonia do nervosismo que dormitava dentro daquele peito magro – Nunca vem ninguém aqui, me sinto vulnerável demais.

- Vulnerável? Se só temos nós e o José no bar, o que de mal poderia acontecer? Quer dizer, você deveria se sentir vulnerável num lugar cheio, quanto mais seres, maiores as chances de um deles chegar por trás e desenhar suas iniciais com estilete no teu peito. Agora, nós dois aqui e você vulnerável? Você tem medo de mim? Quer dizer, posso ir embora, só que não vou pagar a rodada de drinks que prometi.

- Não nos falamos faz anos, não? E você continua idiota.

 O silêncio censurou os atos do mais magro que engoliu, com dor, a fumaça destilada do cigarro. Não era bom começar atacando assim. Continuou tocando sua música milenar do nervosismo, as unhas pontiagudas raspando na madeira velha, transformando uma dança exótica numa obra de arte do entalhe.

- Vi um filme esses dias que me deixou com um nó na garganta. Me lembra esse lugar. – Disse a fumaça de seu cigarro. – Um drink no inferno, chamava. – E riu. Era só uma piada.

- Poxa, esse filme é fantástico! Quer dizer, você já parou pra pensar no que ele retrata? O poder genial do Tarantino e do Rodriguez ao mudarem uma história realista totalmente de foco sem perder a qualidade? No mínimo é de fazer pensar sobre como a mente humana é híbrida e sobre como a arte pode atingir diversas temáticas.

O magrelo sorriu, a boca estirando-se em uma rachadura estranha no meio da zona fria de seu rosto longínquo. Quer dizer que o babaca agora queria discutir cinema e arte pra passar o tempo e quebrar o gelo. Riu.


- Não eleve tanto esse filme, não me diga que você é mais um dos outros.

- Dos outros o quê?

- Dos outros lambedores de saco... Esse filme é o mais superestimado dos séculos, é uma brincadeira infantil com as pessoas que querem assistir um filme sério, ou ao menos entender o que vai acontecer.

- Não, não diz uma bobagem dessas...

- Eu consigo imaginar o Quentin e o Robert, fumados, cheirados e afogados em bebidas e suores dos milhões de pés que eles devem guardar no porão, rindo como dois adolescentes que descobrem pra o que serve seus pênis mal formados, com uma caneta na mão e o roteiro desse filme, exatamente naquela parte, naquela parte que eles entr...

- Não posso concordar com nada disso, quer dizer, se os dois estavam cheirados e fumados e bêbados, estavam durante o filme inteiro. Não há erro, é uma obra de arte sólida!

- Sólida? Assistir aquele filme é como ver um bebê tentando pegar um quadrado de plástico pra enfiar na forma de um circulo, é a maior obscenidade com minha capacidade mental.

- Você precisa parar de ser tão neurótico e paranoico. O mundo real não é essa crosta megalomaníaca sua, às vezes as coisas são feitas porque o são, e você não tem nada a ver com isso, e você sequer existe no universo de quem o fez.

- Claro que existo, eu sou o expectador!

- Você é o doente, você é o homem que anda pelo supermercado com uma maquina de por rótulos nas coisas e preços e pesos e medidas. Vai, bebe mais um pouco que talvez te afoga e te torna mais alegre.

- Não, agora eu quero saber, quero saber o que te faz ver tanta boa coisa num filme que brinca com seu expectador como se fossemos gatos mimados correndo atrás da bola de lã inexistente.

- Mas é isso que um bom filme faz, veja, te move como um marionetista move seu boneco, te joga numa verdade pra destruí-la completamente, te anarquiza, te atenaza, te atazana. Um bom filme faz sim de seu expectador um gato mimado e joga, na distancia que quiser, sua bola de lã, pra que a gente corra como um desesperado e descubra que não é nada daquilo.

- Eu gosto de filmes sinceros.

- Então você gosta de filmes de fantasia, porque não existe sinceridade no mundo, só mentiras polidas e mentiras bruscas, onde as segundas são as perceptíveis.

- Não comece a fazer uma leitura social a partir de um filme horrorosamente trash e pretensioso.

- Não acredito que exista pretensão no filme.

- Como não? Com George Clooney e Harvey Keitel? Como não pode existir pretensão? Ainda consigo imaginar ao menos o Harvey fazendo aquela cena vergonhosa com um peso na consciência enorme. Isso é, além de um insulto ao expectador, um insulto ao grande ator que ele é.


- Eu duvido muito, estavam todos se divertindo e tenho certeza. Você precisa para de ver as coisas com esse véu negro e pesado, essa lugubridade nojenta que sempre sai rastejando da sua boca e só me dá nojo, sempre foi assim! Talvez por isso não nos falamos nesses anos.

- Mas me diz, me diz se não é uma falta de respeito com ele? Aquela mulher dançando, as coisas acontecendo de repente, e o sentido e a coerência sendo derretidos lentamente sobre seus olhos e...

- E é exatamente aí onde está a magia, o poder do cinema, da imaginação doentia das duas pessoas. Eu acredito que não exista conclusão melhor pra esse filme, tenho toda certeza que nasceu desse jeito e não há o que mudar, porque tinha que ser assim, e se não fosse não chamaria tanta atenção!

- E se não fosse talvez fosse o melhor filme escrito pelo Tarantino. A qualidade dos personagens desenhados, o próprio Tarantino como um dos irmãos Gecko, roubando toda sua cena com aquele delírio sexual paranoico psicopata e infantil, tudo isso num olhar tímido, mas que ainda tremeluz como uma vela indecisa sobre sua existência. Sabe? Havia potêncial e quando o filme terminou daquela maneira passei dias triste, pois sabia que haviam matado uma obra prima que poderia continuar explosiva, violenta, sem aquela apelação. Tenho certeza que esse não é o final certo.


- Uma obra de arte é aberta pra todas conclusões, cara. E aberta também para toda modificação que quiser, aí está a beleza. Você pode simplesmente fingir que nada daquilo aconteceu e que é uma enorme metáfora pra uma briga de bar que deu errado. Quem sabe nem acontecera tudo aquilo, mas aqueles goles de cachaça adulterada que fizeram os personagens enxergarem daquele modo e...

- Você já está bêbado, tentando encontrar soluções fora do filme. É o que eu digo, se o filme não explica tudo o que se tem que explicar e não fecha os buracos abertos, não é um bom filme.

- Então quer dizer que pra você a experiência cinematográfica fica no cinema? Não existe extensão mental ou inter-relacionamentos com outras artes, com a sociedade, com a política? Eu posso dizer então que você é um dos piores expectadores do mundo e se o filme te insultou, é o mínimo que você merece. Digo, olha só a qualidade dos diálogos, das atuações, olha a liberdade criativa, a crítica social ao sensacionalismo, às diferenças sociais, à força policial, à prostituição...

- Você enxerga demais onde há de menos.

- E você é cego.

Já haviam, nesse ponto, quatro novas garrafas vazias sobre a mesa enquanto o tempo dava a volta em seu próprio eixo. A conversa fluíra, mas fluíra em desentendimentos e trovoadas mentais. A quinta garrafa chegava quando o mais magro resolveu continuar.

- Eu acho que estamos bêbados, mas eu sei que tenho a razão, um homem não pode acertar tanto quanto Tarantino.

- E Rodriguez.

- Não, não vai dizer isso, Rodriguez é um pela-saco imitador desesperado, ele faz as mesmas coisas em todos filmes, uma cópia de qualidade muito inferior do Quentin, cada filme dele é uma vergonha.

- Mas que menina mais dura com os cineastas! Não faça essa cara, foi uma brincadeira. Os dois tem a mesma formação, fazem a mesma escola de direção, é claro que um é melhor que o outro, mas o segundo não pode ser desrespeitado por isso. Aliás, esse filme tem uma ótima direção e é do Rodriguez.

- Com o Tarantino dando os palpites dele, tenho certeza.

- Não duvido, eles são amigos, não são? E a trilha sonora, impecável! E os diálogos!

- Tarantino, Tarantino e Tarantino. É o mínimo que ele pode fazer em seus filmes, é o mínimo que espero, e quando um filme com potencial vai ladeira abaixo dessa maneira, só me resta entrar de luto.

- Então você gostou!

- Gostei, gostei até a metade, até a ruptura enlouquecida e lisérgica, desnecessário, amigo, arrasou minha noite pensando qual seria o verdadeiro final...

 

- É aquele, quer final mais perfeito?

- Aquilo foi um desleixo, um delírio alcoolizado de uma mente cansada, onde já se viu mudar assim tão bruscamente.

- Mas é a surpresa que traz o prazer! E as piadas visuais são fantásticas! É uma grande brincadeira com o público, com os atores, não é pra ser levada a sério. De um lado temos um filme de suspense magnífico, profissional, à la Tarantino, de outro temos um filme trash também fantástico e engraçado, também à la Tarantino embriagado, são linguagens diferente, mas todos, em sua língua, falaram muito bem e atingiram pontos importantes de qualidade nesses dois estilos. Veja, além de brincadeira é uma porta a mais que se abre, hibridismo radical de gêneros e temas em um filme só, imagina o quanto nós podemos alcançar em uma hora e meia, duas horas, com tamanha capacidade de mudar de assunto e não deixar a bola cair!

- Pra mim deixou, a bola escapou da mão, derreteu como um sorvete superaquecido e muito cansado, assim como eu fiquei quando os créditos subiram. Não consegui engolir esse filme, é uma porcaria superestimada, conhecida só porque traz os nomes que traz.

- Quais?

- Tarantino, Keitel, Clooney.

- Rodriguez, Salma Heyek, Danny Trejo, Juliette Lewis, Tom Savini, que fez um fantástico e bem humorado trabalho de maquiagem e de atuação.

- Sex Machine?

- É!

- Grande merda, um paspalhão estilo os três patetas que não faz peso algum na trama! E a Salma ficou quatro minutos em tela, assim como o Danny, e essa tal Juliette tem uma sobrancelha muito estranha, que só me agredia, além de parecer que só sabe repetir o papel que fez em Cabo do Medo, do Scorsese.


- Não diga uma coisa dessas rapaz, ela é muito boa, apesar de ter os ossos do rosto um pouco estranhos.

- E um duplo queixo, quase igual você.

- Ah, magrelo, fala enquanto pode! Mas fora as brincadeiras, todos os atores estão muito bem em seus papéis, até nos mais estapafúrdios e caricatos, como o porteiro do Titty Twister, inesquecível.

- Isso eu realmente dou meu braço a torcer, mas só dou porque está na metade boa do filme.

- Não existem metades em um filme, um filme é o todo, você divide onde não existe divisão, é quase um crime isso, deveria ter vergonha.

- Não consigo engolir nada disso.

- E por que não?

- Porque não acredito! Foge demais da realidade.

- Isso assusta, não é?

O magrela patinava com os dedos na borda do copo. Entre os dois uma pilha de cervejas que refletia o mais gordo com uma aura espectral e bêbada, os lábios sorrindo de modo soturno, deformado pelo vidro embaçado da ebriedade. De repente o chão começou tremer e uma luz pousou sobre os olhos do mais gordo, que explodia como laser, estourando as garrafas entre os dois.

- Pois deveria acreditar!

O rosto deformou-se como destruído pelo mais forte ácido e da boca longas presas desceram em fileiras e fileiras de dentes, como um tubarão humano. Asas grosas brotaram das costas, com o doentio barulho de uma folha de papel sendo rasgada, a pele abrindo para a aberração passar, estourando o véu da normalidade com as unhas afiadíssimas. O ser que nascera era um misto de tubarão com morcego e alguma outra coisa demoníaca que gargalhava dentro daquela barriga grande que inflava, quase estourando, quase arrebentando as estrias que nasciam agressivas sobre a pele. A camisa jazia no chão, arrebentada pelas asas e pelo crescimento inesperado daquela barriga, e antes que o mais magro pudesse levantar, os diques de pele estouraram em sangue e líquidos pretos e mãos em carne viva puxaram seu ser para dentro daquele monstro milenar que disfarçara-se de seu amigo naquela noite.

- Um drink para todos, eu pago! - E dizendo isso, bateu com a mão ébria na mesa de madeira que dançava ao ritmo dos nervosos pontapés do outro dentro de sua barriga.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Oh, Django!

O Horácio me pediu para descrever em uma palavra Django Unchained (Django Livre, no Brasil), o novo filme de Quentin Tarantino; "Maduro", eu disse... tentarei explicar o porquê disso abaixo...

Uma nota preliminar antes... eu gosto de dizer que não se lê resenha ou mesmo a sinopse antes de ver um filme. Por mais que se evitem spoilers (revelações da trama), ver o filme completamente despido de informações (sobre o mesmo) ajuda a construir uma visão própria e formar suas próprias críticas, sem nunca esperar algo que possa ou te decepcionar ou estragar o elemento da surpresa, que conta muito para algumas obras... Dito isso, concluo que, caso você não tenha visto o filme ainda, suplico, imploro de joelhos que pare de ler esta suposta resenha aqui mesmo, porque, por mais que eu me segure nos spoilers, eles serão inevitáveis. Volte depois, caso ainda se interesse e vamos discutir, mas não leia agora! Mas, se você já viu o filme ou não liga para nada do que eu falei, sinta-se em casa...

Comecemos!

Música Tema de Django

     Por que, na minha opinião, Django é "maduro"? Para começar, dá uma dimensão profunda dos personagens, coisa que, por mais que sim, acontece nos filmes do Tarantino, depois de um tempo se torna razoavelmente raro... Em geral (e isso é uma opinião minha), os personagens são utilizados como instrumentos para o desenvolvimento da trama. Django, no entanto, muda muito durante o filme e nós temos o prazer de acompanhar este processo. Em outras palavras, a trama interage com o personagem, não o comanda. Django só faz as coisas de tal maneira porque existe uma história por trás que o tornou daquele jeito (e nós podemos acompanhar essa história). Isso é novidade! Em Pulp Fiction, por exemplo, onde diversas histórias ocorrem e se entrelaçam, a mudança mais significativa talvez seja a do Jules, personagem do Samuel L. Jackson (que aparece em vários filmes do Tarantino, aliás), mas mesmo assim, é um instante, uma coisa pá-pum, não tem o sentimento de que o personagem está mudando. Um evento, um "milagre" ocorre e ele é outro homem. Em Kill Bill, da mesma forma, a Noiva muda após o ensaio de casamento frustrado e etc... Em todo caso, o ponto é: existe um desenvolvimento (essa era a palavra!) do personagem, acompanhamos Django ir de um escravo assustado e inseguro até... bom... até o final do filme...
     Outra coisa são os laços criados com seu parceiro, Dr. King Schultz (divinamente interpretado por Christoph Waltz, aliás, que já atuou em Bastados Inglórios [Inglorious Basterds] também do Tarantino) estão lá, às vezes externalizados, como em uma das cenas finais, quando Django beija seu corpo (eu avisei que haveriam spoilers!) e outras, implícitos nas ações e atitudes dos personagens.

Cena abaixo citada, para quem quiser relembrar.

A sequência de cenas, aliás, que representa o inverno que passaram juntos, sob o som de "I Got a Name" é uma das partes mais bonitas e tocantes do filme. A fotografia do filme é incrível, seja exibindo as belezas do "Wild West" americano, seja experimentando com a iluminação (vocês sabem do que eu estou falando, a cena do tiroteio na casa grande é um bom exemplo), seja utilizando aquelas tomadas à la Sergio Leone.

Cena de "Três Homens em Conflito", filme de Sergio Leone e grande influência para Tarantino














     Falando nisso, que puta trilha sonora o Tarantino escolheu, de black music aos clássicos do western (Ennio Morricone!), passando por Johnny Cash... É realmente de espantar como tamanha diversidade se encaixou no filme com tamanha perfeição... Mas, fotografias, personagens e trilhas à parte, vou tocar nos pontos que eu pensava quando saí do cinema na primeira e na segunda vez em que vi o filme e que são os motivos de eu estar querendo fazer esta resenha caseira.

1)  Romance

Django é, apesar de tudo, uma história de amor. Como ressalta o Dr. Schultz, Django é Siegfried atrás de sua princesa Broomhilda. E claro, por causa disso, o final não poderia ser diferente. Mas chegaremos lá. Essa forma inédita de encarar tema tão polêmico - escravidão - nos dá a possibilidade de explorar Django não como um escravo (símbolo), mas como pessoa (indivíduo). Isso humaniza o escravo, o afasta das considerações ideológicas, das lutas e o torna acessível ao espectador, o torna igual, em sentidos de ser gente. A escravidão não é o foco principal nem é o objetivo do protagonista acabar com ela. Ela é circunstancial e, apesar de ser um dos pilares centrais da narrativa, está apenas em segundo plano. Isto permitiu algumas coisas ao diretor. Primeiro, que a brutalidade da escravidão fosse evidenciada. Segundo, que esta fosse relativizada (também chegaremos aos dois pontos ainda). E ambos sem nunca comprometer a coerência da busca do protagonista.


2) A relativização da escravidão

Como em Manderlay, filme do Lars von Trier (meu diretor favorito), Django Unchained consegue relativizar a escravidão enquanto questão racial, enquanto dicotomia brancos x pretos. Diferente de Manderlay (não entregarei o ouro aqui, vejam o filme vocês), no entanto, Django mostra a escravidão como questão de poder não como questão racial. A "raça" se encontra na superfície do conflito, mas a violência está nas mãos de quem tem poder e não de quem tem a mão branca. Isso se evidencia muito claramente em dois personagens: o já citado Dr. King Schultz, um branco que abomina a escravidão e, claro, o brilhantemente interpretado Stephen (Samuel L. Jackson), negro que puxa as cordas em Candyland, maior plantation da região. Stephen, que se faz de pau mandado, de puxa-saco, de frágil, mas que sabe muito bem sua posição de comando lá dentro, mesmo que esteja nas entrelinhas das relações. Sua bengala jogada fora no fim do filme é o símbolo de sua fragilidade falsificada. Seu cinismo, sua brilhante construção enquanto personagem são um dos ápices do filme. Stephen é meu personagem favorito.

3) Dois tipos de violência

Vemos em Django duas forma de violência. A primeira é a já conhecida tarantinesca violência exagerada de filmes B, com suas explosões, jorros de sangue, etc... esta é presente em quase todos os seus filmes (à exceção apenas, talvez, de Jackie Brown, filme que foge bem do seu modus operandi. Talvez por ser baseado em um livro, enquanto os outros são roteiros originais). A outra é a violência que retrata a brutalidade da escravidão. Esta também está presente de duas formas distintas: a violência física enquanto tal, onde eu poderia citar como exemplo a cena da luta de mandingos ou a do lutador que tenta fugir e... bem... vocês lembram de seu destino. E há também a violência visual, a que é vista em olhares cansados e submissos dos escravos, em máscaras, mordaças e coleiras (que, aliás, eu nunca tinha ouvido falar antes desse filme, mas que dei uma pesquisada e sim, são reais). Ambas as formas de violência brutal trazem à tona a escravidão em sua forma mais visceral, convida o espectador à discussão acerca deste tema que, para muitos, está obsoleto e enterrado, mas que faz parte de nossa história e ainda está muito vivo enquanto formador da organização social tal como ela é hoje. Tarantino consegue provocar uma mistura de sentimentos, muitos odeiam, muitos adoram, e uma infinidade de coisas entre os extremos, e com isso, traz a inevitável e muito bem vinda discussão.


4) Dois fins, dois filmes

Em consideração ao final de Django, por mim ele poderia ter acabado com o tiroteio na casa grande. Django morre, enfim, como símbolo do fracasso da luta da emancipação negra naquele tempo. E ponto, é o fim. Vitória dos donos de escravo... pelo menos até a abolição efetiva. Seria um final poético, simbólico e daria um puta fechamento para o filme, tornaria tudo muito mais pesado, muito mais reflexivo... mas... não seria Tarantino! A extensão da história e as cenas finais são onde Tarantino demonstra sua vocação explosiva (perdoe o trocadilho) para transformar violência em entretenimento. O final adotado por Tarantino deixa o clima mais leve e é muito mais fácil sair do cinema, sem evitar, no entanto, a discussão posterior. Django se faz Siegfried e obtém sua vingança ao mesmo tempo. Nos gratificamos com a compensação da morte de Schultz e, bem, o "mocinho" ganhou, como em todo western. É uma boa sensação. A sequência de explosões, mortes, tiroteios e cínica execução dos donos da plantation é gratificante em sua maior extensão. Dá a conclusão que o público queria após a preparação que dura o filme todo e, mais precisamente, os momentos finais. Django é o vitorioso e assim termina sua história. Me dá a sensação de existirem dois filmes, o primeiro, reflexivo, profundo. O segundo, explosivo.
Essas duas faces do mesmo filme se complementam de forma incrível e dão origem ao que eu gosto de chamar de "O melhor filme do Tarantino".


Por essas razões, pela capacidade de explorar tantos aspectos em um mesmo filme e por tratar o tema "escravidão" de uma forma inédita, que eu considero este um filme maduro e um dos melhores do ano que passou pelos cinemas.

Trailer de Django Livre





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PS:  O Tarantino explode no filme! O quão sensacional é isso?



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Construção de Personagem - Oblómov

Há algumas semanas (ou foram meses?) comecei a ler Oblómov, de Ivan Gontcharóv... puta livro! Puta livro, mesmo! Impressionante como uma história onde não acontece quase nada de relevante pode te prender e te angustiar... enfim... por motivos de aulas de verão (para repôr a greve), tive que dar um hiato na leitura, mas gostaria de comentar uma parte que foi, até agora, uma das minhas favoritas. Veja, - e falarei de forma bastante pretensiosa, então não se assuste - quando eu crio um personagem (eu sei, como se alguém ligasse), eu gosto de dá-lo um contorno geral, claro, para que o leitor possa entender com quem está lidando aqui, mas deixá-lo vago, de forma a provocar a criatividade e conectividade entre o leitor e o personagem em questão. Em geral, essas características são mais físicas, mas aí depende de quem está lendo, claro... Bom... Gontcharóv conseguiu o que eu nunca poderia sonhar: ele criou o (meu) personagem perfeito! Em duas páginas e meia de descrição, você sabe perfeitamente quem é Alekséiev e ao mesmo tempo não faz ideia de como retratá-lo em sua mente, ou seja, não sabe quem é esse cara. Isso permite ao personagem ser unicamente retratado na mente de cada leitor, permite a identificação pessoal de cada um com ele... ele é uma espécie de zé povinho, average joe ou algo assim... bom... sem mais delongas, vou postar o trecho que cobre a descrição do sujeito:

‎" Entrou um homem de idade indeterminada, fisionomia indeterminada, naquela fase da vida em que é difícil adivinhar a idade; não era bonito nem feio, não era alto nem baixo, não era louro nem moreno. A natureza não lhe dera nenhum traço marcante, notável, nem ruim, nem bom. Muitos o chamavam de Ivan Ivánitch, outros, de Ivan Vassílievitch, e outros, ainda, de Ivan Mikháilitch.
Quanto ao sobrenome da família, também havia diferenças: uns diziam que era Ivánov, outros o chamavam de Vassíliev ou Andréiev, e outros ainda achavam que era Alekséiev.
Um desconhecido que o visse pela primeira vez e escutasse seu nome o esqueceria logo em seguida, e esqueceria também seu rosto; o que ele falava nem se percebia. Sua presença nada acrescentava à sociedade, assim como sua ausência nada retirava dela. Sua mente não possuía senso de humor, originalidade, nem outros traços peculiares, a exemplo do corpo.
Talvez ele soubesse pelo menos contar tudo o que via e escutava e com isso despertar o interesse dos outros; no entanto, não ia a parte alguma: como nascera em Petersburgo, não viajava a lugar nenhum; em consequência, via e escutava aquilo que os outros também sabiam.
Seria simpático aquele homem? Será que amava, odiava, sofria? Na certa devia amar e não amar, sofrer, porque afinal ninguém está a salvo disso. Mas, sabe-se lá como, ele achou um jeito de amar todo mundo. Existem pessoas assim, em quem os outros, por mais que se esforcem, não conseguem despertar nenhum espírito de animosidade, de vingança etc. Não importa o que façam com tais pessoas, elas sempre se mostram amáveis. De resto, é preciso lhes fazer justiça e reconhecer que seu amor, se o dividirmos em graus, jamais alcança o nível do ardor. Embora digam que tais pessoas amam a todos e por isso são boas, no fundo não amam ninguém e são boas apenas porque não são más.
Se diante de um homem assim alguém dá esmola a um mendigo, ele lhe joga também sua moedinha, e se alguém xinga, expulsa ou faz algo atrevido com outras pessoas, ele age da mesma forma. Não se pode dizer que é rico, porque é antes pobre do que rico; mas positivamente tampouco se pode dizer que é pobre, porque na verdade há muita gente mais pobre do que ele.
Tem uma espécie de renda de trezentos rublos por ano e, além disso, tem um cargo irrelevante no serviço público e ganha um salário irrelevante: não passa necessidades, não toma empréstimos de ninguém e, menos ainda, não passa pela cabeça de ninguém lhe pedir dinheiro emprestado.
No seu emprego, não tem nenhuma ocupação especial e constante, porque os colegas e os chefes não conseguem de maneira nenhuma saber o que ele faz pior e o que faz melhor, de tal modo que é impossível determinar para o que ele é especialmente capaz. Se lhe dão isso ou aquilo para fazer, ele o faz de tal modo que o chefe sempre se vê em apuros, sem saber como avaliar seu trabalho; examina, examina, lê, relê, e só consegue dizer: 'Deixe para lá, depois examino melhor... Sim, está quase como deve ser'.
Nunca passa pelo seu rosto o menor traço de preocupação, de fantasia, que demonstre que, naquele minuto, ele está conversando consigo mesmo, e ele nunca é visto dirigindo um olhar cobiçoso a algum objeto exterior, indicativo de que deseja mantê-lo sob sua alçada.
Um conhecido o encontra na rua: 'Aonde vai?', pergunta. 'Pois é, estou indo para o trabalho, ou para as lojas, ou visitar alguém.' E o outro diz: 'É melhor vir comigo ao correio, ou então vamos juntos ao alfaiate, ou vamos dar um passeio'. E ele o acompanha, vai ao alfaiate, ao correio e passeia na direção oposta à que antes estava indo.
É difícil que alguém, exceto sua mãe, tenha percebido seu aparecimento no mundo, muitos poucos reparam nele no decorrer da vida, mas seguramente ninguém vai notar como ele desaparecerá do mundo; ninguém vai perguntar por ele, nem vai lamentá-lo, e ninguém vai se alegrar com sua morte. Ele não tem inimigos nem amigos, mas seus conhecidos são numerosos. Talvez só o cortejo fúnebre atraia atenção de um passante, que renderá homenagem àquele rosto indeterminado, pela primeira vez objeto de honra de uma reverência em que se abaixa bastante a cabeça; talvez até algum outro curioso venha correndo para a frente do cortejo a fim de saber qual é o nome do falecido, para logo depois esquecê-lo.
Pois esse Alekséiev, Vassíliev, Andréiev ou como preferirem é uma espécie de alusão incompleta e impessoal à matéria humana, uma reverberação surda de seu vago reflexo."

Quando conseguir terminar o livro, voltarei (?) com uma resenha completa