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domingo, 27 de abril de 2014

Vivendo ao vento

"Le vent se lève
Il faut tenter de vivre"

Em tradução livre de quem apenas começou seus estudos no francês:

O vento sobe
Deve-se tentar viver.

Os versos de Paul Valery são a coluna dorsal e o cordão umbilical de Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, no original), última animação de Hayao Miyazaki. Ao mesmo tempo em que dão delicada estrutura à elaborada narrativa, também conectam a uterina animação do diretor japonês à realidade, ao público e, principalmente, à si, estabelecendo uma forte ligação autor-obra.





Le vent se lève


Diferente de todos os seus filmes anteriores, Vidas ao Vento não possui quase nada de mágico ou sobrenatural. Miyazaki, conhecido por seus monstros mitológicos, seus universos impressionantes e maravilhosos, seu dom natural para lidar com o sobrenatural, opta por retratar a vida real de um personagem real, tornando Vidas ao Vento sua primeira e única cinebiografia, apesar de bem ficcionalizada, é verdade. As partes mágicas se concentram nos sonhos do personagem, que nos lembram a incrível capacidade criativa do diretor, ao mesmo tempo em que nos coloca uma firme clivagem em relação às suas outras obras: se nelas a magia e o incrível eram comuns e difusas no "mundo real" em que seus personagens se encontram, agora, em Vidas ao Vento, eles pertencem ao mundo dos sonhos. Mas isso não despe o filme e o mundo nele retratado - o "nosso" mundo - de encanto. Pelos olhos e mãos de Miyazaki, o cotidiano e o mundano ganham delineações maravilhosas e cativantes. A crueza da dor e da tristeza das tragédias, nunca escondidas em seus filmes, é pronunciadamente bela. Os sonhos e conquistas, distintamente doces.


O diretor conta a história do designer de aviões Jiro Horikoshi, que projetou o Mitsubishi A6M Zero durante a Segunda Guerra Mundial. O modelo foi considerado um marco na história da aviação por seu design avançado e de grande eficiência. A história de Jiro, no entanto, se funde com um Miyazaki também, em parte, ficcionalizado. De fato, penso que talvez não seja possível compreender todo o significado do filme sem conhecer um pouco da história do diretor.


Hoje com setenta e três anos, Hayao Miyazaki nasceu em uma época em que, há não muito tempo, o ser humano havia descoberto a possibilidade de voar. Ele pertence a uma geração que provou em primeira mão as maravilhas e os encantamentos da aviação incipiente. Imagine o leitor o assombro ao ver um avião pela primeira vez, o quão incrível não deveria ser aquilo que hoje é tão natural para nós? O quão fascinante? Somando-se a isso, seu pai era dono da fábrica de peças de aviões Miyazaki Airplane, o que o aproximou ainda mais das asas. Sua paixão por aviões está evidenciada ao longo de sua filmografia, onde há grande recorrência à aviação e à paixão de seus personagens por voar. Voltando rapidamente ao tema do filme, a fábrica de seu pai fez peças para o Mitsubishi A6M Zero, projetado por Jiro Horikoshi, o que já estabelece um contato inicial entre autor e personagem e dá ao filme outro significado.


Percebe-se logo que Jiro é Miyazaki e Miyazaki é Jiro. Isso fica mais evidente quando temos em mente que o diretor controla todos os passos da produção de seus filmes, muito embora tenha uma equipe que o auxilie. Assim, ainda utilizando-se bastante da animação à mão, Miyazaki fiscaliza frame por frame para ter certeza que seu filme atinja seu padrão de qualidade. Isso e o fato de seus filmes e seu Studio Ghibli terem feito sucesso em seus próprios termos e não em outros, ditados pela indústria cultural, permitem ao diretor controle absoluto de suas criações. De fato, não é apenas Jiro Horikoshi que é Hayao Miyazaki, mas cada aspecto do filme, cada cena, cada diálogo, cada detalhe, cada soprar de vento.

O vento, aliás, localizado na centralidade do filme, é a força motora que faz o enredo caminhar. É o vento que leva e carrega e é trazido pelos aviões. É o vento que, participante ativo, proporciona os principais eventos na vida do personagem. Repetindo: o vento é a força motriz que carrega o enredo, mas não só. É também o que dá força aos personagens, sobretudo à Jiro.


O vento que sobe é o sopro na alma.


Il faut tenter de vivre

Tendo nascido durante a Segunda Guerra Mundial, Hayao Miyazaki, mesmo muito novo, experimentou os terrores da guerra quando sua cidade foi alvo de bombardeio, o que acabou destruindo-a em um incêndio. Tinha quatro anos então, mas jamais esqueceu o crepitar e o alaranjado do fogo no céu escuro. Talvez por isso tenha adotado uma filosofia humanista e pacifista de forma tão firme, coisa que se reflete constantemente em seus filmes. Vidas ao Vento dialoga com isso. De fato, ao escolher um personagem histórico como protagonista, personagem este que fabricava aviões para um Japão em guerra, Miyazaki fez uma escolha provavelmente proposital, não apenas para homenagear aquele personagem, mas também para discutir os aspectos morais de se construir aviões como armas de guerra, mas, ao mesmo tempo, ser contra a guerra. Lembrando que o próprio Jiro Horikoshi, o histórico, era contra o envolvimento do Japão na Segunda Guerra Mundial. Em uma de suas anotações, Jiro escreve sobre a guerra:


"O Japão está sendo destruído. Não posso fazer outra coisa senão culpar a hierarquia militar e os políticos cegos por arrastar o Japão para este caldeirão infernal de derrota"


Como em outros filmes, Miyazaki entra numa área cinza da moral. Sabendo que se faz armas de guerra, é certo continuar desenhando e fabricando aviões e, mais ainda, projetando inovações que melhorem sua eficiência? A mim, Jiro responde, secretamente: Meu maior sonho é fazer aviões. Foi com isso que sonhei quando criança e era isso que respondia quando me perguntavam o que seria quando crescer. Não achava que aviões servissem como armas, pelo contrário, sonhava com grandes aviões que transportassem centenas de pessoas pelo mundo. Aviões são lindos, sussurrava, para quem quisesse ouvir, são os homens que fazem deles armas de guerra, mas isso não significa que não devamos construí-los. Aviões são sonhos que eu tenho a oportunidade de tornar realidade!

Jiro sabia das consequências de suas criações: "nenhum deles voltou", diz, ao final, melancólico e exausto, sobre seu Zero, sua obra prima, mas sabia também que deve-se tentar viver, da melhor forma possível.

Em seus sonhos, Jiro dialoga com um dos pioneiros da aviação, Giovanni Caproni, que lhe questiona, ao ser confrontado com o mesmo dilema moral: "você prefere um mundo com ou sem pirâmides?", quer dizer, as coisas grandiosas, que são feitas a custo de sangue e suor, merecem ser feitas?

É uma questão polêmica e, quer concorde com ela ou não, é uma discussão que o diretor está propondo. Em Vidas ao Vento, não há espaço para o maniqueísmo: as coisas são como são e os julgamentos de valor são de cunho pessoal e subjetivo, não inerentes à realidade. Em certo momento do filme, Miyazaki (que, aliás, tem diploma em Ciência Política e Economia) destaca a enorme desigualdade social no Japão da época, que investia fortunas para fazer aviões de guerra enquanto seu povo passava fome. As coisas são como são e a vida, muitas vezes, é uma triste realidade, violenta em muitos sentidos... Mas, como sempre, deve-se tentar viver.

Vivendo


O fato é que o último filme de Miyazaki, e eu digo último não apenas por ser o mais recente, mas também pelo diretor ter anunciado a aposentadoria após seu lançamento, nos transporta diretamente para o Japão da primeira metade do século XX: aquele país agrário, atrasado tecnologicamente, que viria a se tornar um importantíssimo pólo tecnológico mundial. Vemos os costumes mudando: as ideias e hábitos ocidentais se infiltrando na cultura tradicional japonesa, a carne tomando lugar do peixe, o café substituindo o chá... um retrato muito vivo de uma época passada. E, acima de qualquer coisa, com personagens muito vivos, com emoções e desejos e falhas muito, muito humanas.
Vidas ao Vento, com sua belíssima animação, de movimentos fluidos (sobretudo os movimentos do vento, maravilhosamente trabalhados) e estonteantes paisagens, nos carrega em seu voo pela vida de Jiro Horikoshi e pela alma de Hayao Miyazaki e nos presenteia com um tocante presente de despedida do diretor: uma verdadeira ode à vida.