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domingo, 13 de julho de 2014

O asfalto no beijo.


Ser homem ou ser humano


“Arandir (numa alucinação) – Dália, faz o seguinte. Olha o seguinte: diz à Selminha.
(violento) Diz que, em toda minha vida, a única coisa que salva é o beijo no asfalto. Pela
primeira vez. Dália, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom!’




Em 1960, Nelson Rodrigues publicou “O Beijo no Asfalto”. Nessa obra, um homem morre atropelado por um ônibus e em seu leito de morte pede ao outro homem que se projetou para ajuda-lo um beijo na boca. O homem o faz. O homem beija o homem na boca. E a partir daí o homem é caçado, esquartejado socialmente, destroçado em sua sensibilidade, expostas tripas podres e vergonhosas. Um beijo no asfalto, tão sujo como o solo, tão sujo como o sangue, aquelas bocas delicadas se tocando, os bigodes espetando o rosto com barba por fazer, a boca do agonizante já com gosto de seu sangue, fazendo do beijo um evento maior que o beijo. Havia asfalto no beijo. Câmeras, imprensa, sensacionalismo, delegacia, três tiros. Não é o melhor futuro que espera nosso herói, o homem que ousou beijar o moribundo. O motivo? Nenhum. Atender um pedido. Atender um último pedido. Natural, assim. Assim como é natural morrer por um beijo proibido. O homem beija por sensibilidade, delicadeza que aflora. Beija por sentir necessário o beijo no cadáver pedinte. O asfalto também é beijado, é onde o corpo do homem atinge. O fundo do poço. Jamais questiona a si mesmo: o beijo no asfalto foi o mais próximo a ser bom.

Nelson Rodrigues nos entrega uma história que surpreende em sua simplicidade e audácia, em sua super-humanidade, em sua agressiva corrupção. O "Anjo Pornográfico" não usa de sua "pornografia" aqui, ele abre espaço pro amor e pras leituras sociais do mesmo. Nelson Rodrigues nos atropela e nos beija, enfim, agonizantes. Falas rápidas, entrecortadas, como falas de verdade são. É uma peça, oras, a mímese perfeita da fala humana, Aristóteles totalmente orgulhoso ou se suicidando eternamente no céu ou inferno que se encontra (talvez inferno, por ter dado beijos em homens com ou sem asfalto). Os temas abrangem caminhos enormes e reflexões ainda maiores. Me movimentou até aqui, nessa ínfima gota de meu suor, e me movimenta ainda mais. Porque em mim houve um mergulho, me senti o homem que beija o morto, me entendi assim. E entendi a bondade que o personagem Arandir sentiu, e entendi a grandiosidade de um beijo no asfalto. Senti, enfim, a dor da incompreensão e das jaulas fálicas de um mundo mentalmente castrado e domesticado erroneamente. 


Imagine você, o ápice da bondade humana: doar seu beijo ao homem que pede em seu único momento. Doar, ao homem moribundo, o filete de alegria e prazer para suportar a dor. Ou talvez uma certeza, Um carinho. Uma réstia de amor. Mas não é disso que se trata. Não podemos ser bons assim. O homem bota peso nas costas do próprio homem. E ele tem sempre que ser apto para carregar, qualquer deslize, qualquer piscadela, é o fim como um beijo no asfalto. A eterna existência dos homens são homens que agonizam no chão e outros homens que negam o beijo derradeiro, ou os raros que realmente os beijam e que são julgados e mortos, enfim, banidos do império dos machos. É a voz sentimental calada, é a veia poética esturricada pela falta de alimento. Boca é pra chupar. Pra falar palavrão. Pra morder lábio de fêmea e teta. Poesia não transcorre dessa boca, não de boca que não sorve poesia, o asfalto seca, veias abertas do solo gritante, sem beijos, sem piedade. Raro ver homem se abrindo pra homem. Raro ver choro de homem, lágrima na barba, lágrima na masculinidade. A única coisa que chora é a cabeça do meu pau, ouço. Sim.




Duvido de minha posição de homem. Figura masculina tive em momentos diferentes e não dei atenção a elas. O futebol nunca fez parte do meu vocabulário ou vontade. Tampouco brigar. Tampouco pegar mulher como se pega o lixo que estourou no chão. Mijar envolta de si e do que é seu nunca me foi algo a passar pela cabeça, marcar território como bom macho alfa. Ser másculo, ser duro e inflexível. Em mim sempre brotou a poesia, a música, a sensibilidade, a observação. Homem age, eu olho. Homem é bem sucedido, eu falho em tanto. Duvido, se é isso ser homem, do que sou. Viadagem, devem pensar. Pensem.

Se isso for homem, essa virilidade azeda e falsa, essa selvajaria acéfala e repetitiva, essa brutalidade calosa e enrugada. Se é isso ser másculo, o soco sempre pronto e certeiro entre os dedos, os dentes presos com xingamentos e putaria, os paus sempre muito duros e enormes, briga de falos, potências sobre potências. Se é isso não sou isso. Sou o resto disso. O resto do que ser homem é. Sou o intermédio, sou sem remédio, enfim. O homem me refuta de seu clube. Tem que ser mais homem, rapaz.

Sinto pena das vendas nos olhos que choram por dentro, dos músculos estourando que tampam o cérebro, do sorriso desesperado pro espelho acreditar. Esse clube de machos com paus em riste, proibido menor de vinte centímetros pra entrar. Sinto pena da prisão que o homem se encarcera pra provar ser homem pra si mesmo. Porque os outros nem estão ligando. Ele precisa da aprovação dele, apenas. O homem não produz lágrimas ou sentimentos. O homem não se abre para amigos, nem amigos muito íntimos ele tem. O homem de verdade só pode prosperar, não existe falência, não existe inércia, você é um homem ou um rato? Seja homem, levanta. Seja homem, não humano.


É muita coisa em cima do homem e aquele que não conseguiu evoluir músculos para carregar o fardo que a si mesmo impõe, aqui não vive. A tacha de suicídios entre homens é a maior, os homens são insatisfeitos consigo mesmos, como? Talvez o desenho que esperam de si não é o que consigam. Talvez a criação de ser homem seja transcendente demais, seja um ser perfeito demais para nós alcançarmos, o homem é um mito. Porque às vezes não se consegue ser homem e falhamos sendo humanos, acontece bastante. E vem o julgamento do outro, e vem a difamação interna e externa, e vem os questionamentos que todo um percalço de autocriação traz.  O homem é fruto do homem.  O homem é o homem do homem (Plauto e Hobbes que me perdoem). O homem é sua própria vítima. O homem é tão homem que às vezes se cansa. E à noite, no escuro atrás de nossas pálpebras, o homem se deixa atropelar e pede, dolente e ensanguentado, o beijo a outro homem.

   Leia mais sobre o assunto: https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/pelo-direito-de-broxar-falir-e-ser-sensivel-campanha-pede-que-homens-libertem-se-do-machismo/

 Ou só veja o vídeo:



No final não falei da obra do Nelson Rodrigues. 
E falei.


Assistam o filme de  1981.

O Beijo no Asfalto - Nelson Rodrigues