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quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Sobre Violência, Ensaios e Crônicas

Fotografia que rendeu o Pulitzer e o suicídio a Kevin Carter


Calhou de eu estar lendo o “Sobre fotografia” da Susan Sontag quando meu professor de fotojornalismo cobrou uma resenha do filme “Morrendo para Contar a História”. O filme gira em torno da vida de um jovem fotojornalista de guerra que morre por algum motivo que só será revelado pelo final. Enquanto se constrói o suspense, são exibidas entrevistas e depoimentos de vários fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas de zonas de conflito. A questão é que a cabeça por trás da realização do filme é justamente a irmã do falecido jovem fotógrafo, que se coloca como uma espécie de personagem em um drama difícil de engolir, por mais que seja, no fim das contas, real… É sempre difícil de tragar dramas televisionados. Os reality shows nos deixaram entorpecidos pra esse tipo de coisa. Seja como for, a narrativa é cheia de impressões emocionadas que colocam o garoto, assim como os demais jornalistas, como mártires da comunicação, democracia e todos os valores ocidentais que nos são tão caros.
Lendo Susan Sontag, tudo muda de esquema. Em seu ensaio Na Caverna de Platão, ela explora a relação do mundo contemporâneo com a imagem, pensando na fotografia como cada vez mais fundamental e fetichista em nossa torpe interação com o externo. Tudo isso é importante, mas Sontag chega num ponto nevrálgico para mim, que muda minha compreensão do filme e me dá os merecidos socos na cara, que alguém com a quase obscena e absurda pretensão de ser fotógrafo nos dias de hoje - ou seja, viver da imagem alheia na sociedade do espetáculo - deve levar.


Subvertendo o sentido da fantástica foto de Maurício Hora

Fotografia é violência. Fotografar é, intrinsecamente, um ato de agressão. “Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento - e, portanto, ao poder”. Ela é irredutível. “Existe uma agressão implícita em qualquer emprego da câmera”; “Existe algo predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos. Assim como a câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um assassinato sublimado - um assassinato brando, adequado a uma época triste e assustada”.
Enquanto lia o ensaio, lembrava de mim mesmo e de minhas ainda parcas experiências com a câmera. Lembrei de um caso na ocupação da reitoria da UFRJ. Os alunos, sobretudo os que moravam no alojamento, ocuparam a sala do reitor contra os absurdos a que eram submetidos, a falta de bolsas e as condições sub-humanas do programa de moradia da universidade. Conseguiram uma reunião com o então reitor Carlos Levi e, entre tantas falas, uma menina moradora de uma república universitária, relatou os muitos casos de estupro e abuso nas repúblicas. Todas as mulheres do recinto estavam aos prantos. Eu, munido de câmera, me senti como numa analogia de Susan Sontag, quando ela faz a comparação entre a câmera fotográfica e a arma. Carreguei, mirei e não pude disparar. Como o assassino que desiste no último instante, enxerguei a violência que seria me apropriar daquelas mulheres em seu momento mais vulnerável. Percebi que, para além de já ser um péssimo jornalista, seria também um péssimo fotógrafo. Perdi o registro.
O que me leva de volta ao filme. A narrativa, por mais que se queira dizer que os fotógrafos são mártires, conta a história de agressores. A forma como o garoto morreu, após levantadas as cortinas do suspense, é absolutamente simbólica. Um helicóptero americano metralhou por engano - é sempre por engano - um prédio cheio de inocentes. A imprensa ocidental compareceu para fazer o registro. Ao vê-los, os moradores enfurecidos canalizam toda sua raiva contra os jornalistas. Pedras voam e muitos são pisoteados. Dan Eldon - acabo de lembrar o nome do garoto - não morreu sozinho. E não morreu à toa. Em outro depoimento, Don McCullin, o renomado fotojornalista que registrou o Vietnã e mudou a forma como se fotografava a guerra, conta a história de como deixou de registrar o tema. Estava no Líbano quando um prédio desabou, acredito que por uma bomba. Uma mulher chorava intensamente. Don apontou-lhe a câmera. A mulher viu e, enfurecida e justificadíssima, atacou. Chutes, socos, tapas. Don ficou em estado de choque. Quem sabe o que aquela mulher não acabara de perder? A família, a casa, e quê mais? E aquele homem lhe apontava uma câmera! A violência nunca foi tão evidente. Infelizmente para Dan Eldon, não foi uma mulher, mas uma multidão que viu em sua própria violência justificativa.
Susan Sontag, ao falar de violência, consegue, em sua própria forma de escrever, ser violenta. Ler seu ensaio é doloroso, machuca e, de uma forma masoquista, é também extremamente prazeroso. Susan faz afirmações categóricas, não se incomoda tanto em basear os argumentos porque sabe que são verdade. É a base ensaística que Starobinski descreve e que ela domina tão bem. Como Montaigne, “agarra pela cabeça” o tema mas, não satisfeita, o mastiga e cospe, deixando um leitor ferido, moribundo e encantado. Sobretudo se o aventureiro for fotógrafo ou, pior ainda, aspirante a fotógrafo. Mergulha dentro de si para afirmar o que, no fim das contas, soa como óbvio. Como coloca Starobinski, a relação indissociável entre o subjetivo e o objetivo.
Assim, Susan “ensaia a si mesma” e narra seu primeiro choque diante de uma “imagem do horror”:


“O primeiro contato de uma pessoa com o inventário fotográfico do horror supremo é uma espécie de revelação, a revelação prototipicamente moderna: uma epifania negativa. Para mim, foram as fotos de Bergen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945. Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real - me ferira de forma tão contundente, tão profunda, tão instantânea. De fato, parece-me plausível dividir minha vida em duas partes, antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos) e depois, embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu compreender plenamente do que elas tratavam. (...) Quando olhei para essas fotos, algo se partiu. Algum limite foi atingido, e não só o do horror; senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas uma parte de meus sentimentos começou a se retesar; algo morreu; algo ainda está chorando.”


Evandro Teixeira evidenciando a banalização da violência
Do seu mais íntimo subjetivo para o objetivo. Susan Sontag disserta agora sobre como há um preço alto a se pagar pelas imagens do horror: a banalização da violência e do choque. Isso faz parte da maldade da fotografia. Da exposição da guerra à banalização da mesma. Se alguém vir suficientes cabeças decapitadas, não se surpreenderá mais com elas. Como coloca Susan, “após uma repetida exposição a imagens, o evento também se torna menos real”. A perversidade da imagem… a criação dos simulacros e a mitificação da realidade - inalcançável por si, banalizada e tornada onírica pela repetição ad infinitum de si mesma. A foto é, hoje, como bala da metralhadora que é a câmera. É só segurar o gatilho que cada vez mais shots por segundo são disparados, encapsulando e violentando a própria violência. Destruindo a inocência e distribuindo socos e pontapés. Susan Sontag afirma, categórica, que a foto nada faz para impedir a guerra e a violência se não houver uma predisposição ideológica para tal. Ela diz algo na linha de “as fotografias não mudam nada, só reforçam o que já existe”. Mais que isso, para ela, fotografar é ter interesse pelas coisas como são, manter o status-quo.
De volta ao filme, a justificativa que dão os fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas de guerra é que eles fazem o que fazem para poder mudar as coisas. Talvez, aos olhos de Sontag, seja questão de excesso de ingenuidade ou falta de honestidade da parte dos personagens. Seja como for, o ensaio de Susan, embora inconclusivo quanto aos muitos temas que aborda, parece sugerir que as fotografias potencializam, para bem ou para mal, a violência da guerra, que é já violência em seu estado mais puro. O duro registro violentará os violentados e, ou adormecerá o mundo globalizado acostumado com a barbárie ou reforçará os discursos já existentes que se utilizarão da violência da guerra concretizada na violência da foto para dizer um basta à violência. Esta última frase, confusa que soe (eu mesmo tive que ler algumas vezes enquanto escrevia), é tocada, de certa forma, por Rubem Braga na crônica A Menina Silvana.
Braga na guerra. Péssimo jornalista, pior seria soldado. Tinha coração demais pra essas profissões desastrosas.


Do cenário escatológico de pilhas de corpos e flashes de tortura e dor do ensaio de Susan Sontag, passamos ao intimismo analítico do Velho Braga. Como uma transição abrupta de uma das últimas cenas de Apocalipse Now para uma filmagem caseira do enterro de um ente querido, a sensação que dá ler ambos os textos em seguida é a do absoluto contraste. Enquanto os dois tocam no tema da violência, sobretudo a violência na guerra, a escrita de Sontag é explosão. Do Braga, desvelamento. Cometa e borboleta. Enquanto Susan Sontag faz um panorama amplo e múltiplo, Braga lida com o que os olhos veem e o coração sente. É um zoom de teleobjetiva numa multidão.
O Braga, conhecido por ser cronista com pedigree, ou quase, como coloca Antonio Candido, se encontrava, durante a Segunda Guerra Mundial, com a Força Expedicionária Brasileira na Itália, como correspondente de guerra. Ele mesmo é o primeiro a entender essa posição, essa da “confortável guerra de correspondente”. Como Sontag, o Braga fala da inevitável banalização da violência. No entanto, a aborda de uma forma distinta.


“Vai-se tocando, vai-se a gente acostumando no ramerrão da guerra; é um ramerrão como qualquer outro: e tudo entra nesse ramerrão - a dor, a morte, o medo. o disco de Lili Marlene junto de uma lareira que estala, a lama, o vinho, a camarolo, a brutalidade, a ajuda, a ganância dos aproveitadores, o heroísmo, as cansadas pilhérias - mil coisas no acampamento e na frente, em sucessão monótona.”
O cronista fala, como observa Antonio Candido, de forma íntima e, em a A Menina Silvana, Braga parece começar num misto de conversa e carta com o leitor, para depois explodir. Mesmo no turbilhão da guerra e no coração engessado pela violência, o lampejo de uma pequena italiana ferida, desacordada, é o suficiente para tirá-lo do torpor. Aqui, a vítima, antes cadáver inominável e irreconhecível do ensaio, ganha nome, idade, corpo, identidade. “Silvana Martinelli”, “10 anos de idade”, de “corpo alvo e fino que tremia de dor”, “quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo”. Diferentemente do ensaio, que sobrevoa os corpos mutilados e sem vida, a crônica de Braga descreve a menina Silvana, a humaniza, a torna palpável. A poesia própria da crônica, como aponta Candido, em oposição à, talvez, análise ensaística. A proximidade emocional e física que nos permite a literatura, sobretudo a linguagem corrente usada na crônica.
Toda a violência de Susan Sontag me machucaram até o limite, mas foi a delicadeza da menina Silvana e a revolta emocionada de Rubem Braga que me arrancaram (e me arrancam) lágrimas. Talvez a potência da palavra se sobreponha à imagem neste sentido. A imagem fotográfica é o que é. A palavra é construção, cadência, um crescendo trágico ou cômico, mas que leva. A fotografia permanece. E que tristeza concluir isso - se é que há conclusão em alguma coisa - ainda aspirando ser fotógrafo. Não tarda, a triste epifania me alcança. Mas divago.
Braga interage com a menina. Ela o olha silenciosamente. Ele protege seus olhos da luz forte. Ela continua a olhá-lo. Conversa com ela através de sua conversa conosco. Com ela e com todas as Silvanas moribundas e de frágil corpo doente.


“Às vezes um homem recusa comover-se: meninas da Toscana, eu vi vossas irmãzinhas do Ceará, barrigudinhas, de olhos febris, desidratadas, pequenos trapos de poeira humana que o vento da seca ia a tocar pelas estradas. Sim, tenho visto alguma coisa, e também há coisas que homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres - sim, por mais distraído que seja um repórter, ele sempre, em alguma parte em que anda, vê alguma coisa”.


A delicadeza de Leonardo Ramadinha. Me lembra o Braga. Cada um com sua borboleta. Cada um com sua pedrada.

Rubem Braga coloca o outro lado da violência. Enquanto Susan Sontag se foca nos causadores, Braga pensa nos que sofrem, incluindo ele próprio e os repórteres, os jornalistas, e, porque não, os fotógrafos. Don McCullin jamais fotografou zonas de conflito novamente depois do incidente com a senhora no Líbano. Aquilo o chocou profundamente; saber que tinha agredido e violentado aquela mulher. É um jogo de perdedores… Antonio Candido comenta essa mistura de sentimento e crítica social, entendendo a crônica também como ambiente de engrandecimento e aprendizado para o leitor, embora seja, afinal, considerada estilo menor. Para ele, isso a liberta dos rebuscamentos e sofisticações que afastam o texto do leitor. Eu concordo. Nesta crônica - e em tantas outras - Braga toca no nuclear; ele se torna, para usar uma frase que li em algum livro de poesia que não comprei, ferro enferrujado cravado em carne exposta.
E continua, no que se torna um verdadeiro manifesto.


“Há 13 anos trabalho neste ramo e- muitas vezes não conto. Mas conto a história sem enredo dessa menina ferida. Não sei que fim levou, e se morreu ou está viva, mas vejo seu fino corpo branco e seus olhos esverdeados e quietos. Não me interessa que tenha sido inimigo o canhão que a feriu. Na guerra, de lado a lado, é impossível, até certo ponto, evitar essas coisas. Mas penso nos homens que começaram esta guerra e nos que permitiram que eles começassem. Agora é tocar a guerra - e quem quer que possa fazer qualquer coisa para tocar a guerra mais depressa, para aumentar o número de bombas dos aviões e tiros das metralhadoras, para apressar a destruição, para aumentar aos montes a colheita de mortes, será um patife se não ajudar.”


Aqui ele entende a inevitabilidade da violência… A guerra não é algo que possa ser evitado, é um fato, um fato de violência que, como um incêndio na floresta pode ser controlado com outro incêndio localizado que lhe tire o combustível, precisa de violência para se extinguir. E, embora Braga jamais toque nisso, talvez nesse sentido a violência da fotografia seja necessária. Encerra a crônica da seguinte forma:


“Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (sem importância nenhuma no oceano de crueldades e injustiças), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (mas oh! hienas, oh! porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, oh! altos e poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa menina camponesa?), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (oh! negociantes que roubais na carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?) - por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.”

Afeto e dignidade da família de um carvoeiro em situação de escravidão.
O olhar e a sensibilidade são de João Roberto Ripper


Setenta anos depois, estava eu lendo e me arrebatando com o Velho Braga. Arrasado. Profundamente emocionado. Antonio Candido dá mais algumas características para a crônica. Uma delas é a gratuidade. Uma crônica não é uma notícia, ainda que venha dentro do jornal. Não traz a “informação” que pede a produção jornalística, turva, ressaqueada que seja essa ideia (perdoe o recalque de um aluno incompetente de jornalismo). Oscar Wilde disse, no prefacio d’O Retrato de Dorian Gray, que a arte é coisa absolutamente inútil. Bem depois, chega o Marcelo Jeneci na mesma linha cantando que “o melhor da vida é de graça”. De fato, pouco importa a menina Silvana. Pouco importa que Braga a tenha visto. Pouco importa que tenha morrido ou vivido ou sofrido. Silvana não foi ninguém. Não foi notícia. Braga, com a crônica, transforma o gratuito em visível. A borboleta amarela que persegue na rua, a mulher com medo de avião que segura seu braço no voo… Ironicamente, talvez estas coisas sejam mais reais do que as informações priorizadas pelos jornais. Silvana foi e será sempre mais real do que as estatísticas dos mortos na guerra. O cotidiano nos diz mais respeito do que as conjecturas dos especialistas. Mas divago novamente.
Outra característica apontada por Candido é o caráter efêmero da crônica. Por estar no jornal, é algo de passageiro, de temporário. E isso é belo, por sua liberdade e capacidade de se dissolver no ar, sem deixar registro. Mas, ao mesmo tempo, dói. Existiria violência maior do que ter a consciência de que a menina Silvana e o corajoso manifesto de Braga estariam, no dia seguinte, embrulhando cocô de cachorro em Copacabana?

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Pontes para Si - Pitanga em Pé de Amora ou A Importância de Morrer.

       
            Ta aí a primeira resenha suicida do mundo. Vou te explicar, fantasma leitor.

Poucas vezes em minha vida posso dizer que me aproximei tanto da morte. Poucas vezes posso dizer que entrei em contato direto com minha existência, capaz de compreendê-la e soltá-la feito pássaro nesses meus labirintos e abraçar assim, em sorrisos, a atormentadora morte. Nesses momentos únicos, ímpares e paradoxais, a morte torna-se bichinho de estimação, um cachorro amoroso que nos lambe a face e nos molha em seu amor. A morte vira namorada, dá-nos a mão e beija-nos a boca e nos faz atingir o maior gozo já alcançado pelo humano frágil corpo. E ficamos lá, nós dois, eu e a morte, a valsear pelas ruas confusas e acinzentadas, eu pronto e puro para ser abatido, ela só a brincar comigo, pois nunca me ousou levar. Assim senti. A última vez, três anos atrás, era um dia nublado e vazio, meus pés no chão cinzento da cidade, nos ouvidos o Réquiem do Mozart, no corpo um prazer etéreo que só a musica pode vibrar. Ali eu pensei imediatamente que poderia morrer facilmente. Tão leve que era capaz da gravidade me refutar, do Sol me imantar, do corpo pulverizar-se naturalmente. Alguma alquimia poderosa e antiga acontecer ali, me metamorfosear em bando de pombas brancas, dentes-de-leão ou apenas cinzas ao vento...  Ali nada temia eu, abraçando Mozart em sua morte e velando seu corpo. Poucas vezes tive essa experiência pré-mortem e post mortem. Hoje, depois de tanto tempo, eu tive, ao ouvir o novo disco dos amados Pitanga em pé de amora. Morri completamente e renasci poderoso no fim de cada música. Cada célula sentindo as potências musicais e vibrando tão forte que não aguentavam a própria vida. Era isso meu corpo: show de fogos de células confusas se implodindo de prazer. Morri de dentro pra fora, inverti-me, e ao fim de cada experiência me renovei. Esse álbum, amigos, nos dá a chance de ser fênix finalmente.

Pontes par Si. Sem dúvidas o nome foi tão certeiro quanto cada música com que esses moços e moças nos presenteiam. Pontes, tantas pontes que confundem. E dentro do caos reina o sentido de ser e o sentido de existir tantas pontes e atalhos para Si. Nunca ouvi algo tão maduro, no movimento natural da lagarta se metamorfoseando em seu casulo até a libertação de suas asas. Nunca presenciei uma tomada de identidade e musicalidade tão afiada e, sim, afinada. Refinada. Sem fim. Enfim, nada pode explicar em palavras essa mutação tão natural dessa trupe musical, pincelando essas notas lindas de dó à (pontespara)si. Falo aqui, em minha pequenez de conhecimento, que esse álbum e essa reunião de amigos com a musica, toda essa brincadeira poética, esses trava línguas instrumentais, todo esse todo é o melhor resultado da musica nas minhas ultimas descobertas. Os Hermanos, Camelo, Amarante, Graveola, O Terno, Os Mulheres Negras, Orquestra Filarmonica, Cícero, Móveis Coloniais, e mais, esses tão grandes, tão bons, tão únicos em suas idiossincrasias e tão unidos nessa mesma vibração de fazer pulular a boa música em nosso cenário musical difícil são pitangas em pés de amora. São diferentes, apontados, são destacados, são deslocados. Somos assim todos nós. E por sê-los, para mim, é esse o álbum que maior se destaca na história dessa nova música que vem nos inundando (perceba: inundando, mas não afogando. Afinal, no prazer me inundo facilmente).

Eu aqui, sobre meu troninho de nada, no meu tamanhozinho pífio, me cubro com esse tecido tão bem costurado. Essa música madura e ecoante, que gruda e desgruda postas de nossa carne, nos põe pra sangrar. Temos que sangrar, senhoras e senhores! Aceitar nosso sangue, senti-lo e toma-lo! Tomar nossas misturas, nossos líquidos confusos, do mais árido ao mais cremoso, e nos entender inteiros. Temos que fazer essa endoscopia musical, esse exame de próstata sentimental para nos sentir cada musculo, cada fibra à flexionar, cada resposta natural ao todo. É isso que me senti, aliás, uma caixa de bateria batendo sozinho a cada música, extremamente afinado com todos os tons de Pontes para Sí. Uma impossível caixa de bateria afinada em todos as tonalidades do mundo. Devo isso, essa percepção, a eles. Essa percepção que devemos ser multi-instrumentais, extra-tonais, transcendentonais. Revolu-de-dó-a-si-onários.

E aqui, eu observador com catarata nos olhos, confuso nessa floresta árida de poesia e internos labirintos, eu que tão pouco sei e tanto ouso falar e gritar, pequenininho nos pés dos grandes, como uma criança, um bebê-pulga, posso afirmar em toda minha falta de autoridade em qualquer assunto (e aliás acho que é tão importante isso que vou dizer a seguir que vou botar em um parágrafo só para ele):

Tem certas coisas que merecem entrar para a História e a Identidade Musical de uma Nação (e perceba quantas maiúsculas, isso é realmente importante, leitor). Coisas como a Tropicália, a Bossa Nova, coisas Revolucionárias assim, marcantes cicatrizes belas. Pra mim o álbum ao qual ouvi hoje merece estar marcado para o futuro, porque é de tamanha excelência e profundidade que raro se vê e quase não se vê mesmo ali existindo. E em tudo toca, porque bebe direto dos nossos pais e dos nossos avós, na linda complexidade da bossa nova, do choro, do samba, do frevo, das marchinhas, coisas estritamente brasileiras. Passeia afinadamente entre todos esses mundos, brinca até com o funk, aceita a miríade social e musical brasileira. Fala do todo mirando nessa partícula minúscula e eternamente complexa que é o “si”, o cada um. É de cada um que se forma o todo, cada célula da nossa comunidade (veja, a própria palavra nos diz: comum-unidade).

Vamos morrer juntos, amigos. Morrer musicalmente, de dentro pra fora, abraçar esse vento sólido que nos toma. Vamos ouvir e aceitar essa possessão, beber dos exorcismos musicais. Sintamos na boca escorrer a excelência e um aplauso enorme à esperança! Uma ovação aos dedos e às bocas, às mentes, às poesias, uma salva de plumas e palmas tão grande que tenham a consistência de um cobertor e que cubra, enfim, nossos artistas. Artistas que devem ser sempre, fervorosamente abraçados e que precisamos sempre mostrar o quanto são importantes. Porque importantes são, por serem um outro capaz de nos fazer entrar em contato com nosso eu. Por serem, enfim, nossas pontes para si.

E não vou mentir, fiquei com invejinha dessas músicas tão bem arranjadas, poetizadas, cantadas, feitas em si. Quem sabe esse eu com minhas músicas tão quebradiças e engatinhantes chegue um dia nos pés desses senhores e senhoras? A mim basta o sonho, as asas eu desenho depois. Do mais, vale a pena. Acredita em mim. Acredita neste louco apaixonado, vai. Não vou te decepcionar. Vamos lá.


Vai, para de ler essa baboseira. 




De quebra, eles no programa Ensaio:



domingo, 13 de julho de 2014

O asfalto no beijo.


Ser homem ou ser humano


“Arandir (numa alucinação) – Dália, faz o seguinte. Olha o seguinte: diz à Selminha.
(violento) Diz que, em toda minha vida, a única coisa que salva é o beijo no asfalto. Pela
primeira vez. Dália, escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom!’




Em 1960, Nelson Rodrigues publicou “O Beijo no Asfalto”. Nessa obra, um homem morre atropelado por um ônibus e em seu leito de morte pede ao outro homem que se projetou para ajuda-lo um beijo na boca. O homem o faz. O homem beija o homem na boca. E a partir daí o homem é caçado, esquartejado socialmente, destroçado em sua sensibilidade, expostas tripas podres e vergonhosas. Um beijo no asfalto, tão sujo como o solo, tão sujo como o sangue, aquelas bocas delicadas se tocando, os bigodes espetando o rosto com barba por fazer, a boca do agonizante já com gosto de seu sangue, fazendo do beijo um evento maior que o beijo. Havia asfalto no beijo. Câmeras, imprensa, sensacionalismo, delegacia, três tiros. Não é o melhor futuro que espera nosso herói, o homem que ousou beijar o moribundo. O motivo? Nenhum. Atender um pedido. Atender um último pedido. Natural, assim. Assim como é natural morrer por um beijo proibido. O homem beija por sensibilidade, delicadeza que aflora. Beija por sentir necessário o beijo no cadáver pedinte. O asfalto também é beijado, é onde o corpo do homem atinge. O fundo do poço. Jamais questiona a si mesmo: o beijo no asfalto foi o mais próximo a ser bom.

Nelson Rodrigues nos entrega uma história que surpreende em sua simplicidade e audácia, em sua super-humanidade, em sua agressiva corrupção. O "Anjo Pornográfico" não usa de sua "pornografia" aqui, ele abre espaço pro amor e pras leituras sociais do mesmo. Nelson Rodrigues nos atropela e nos beija, enfim, agonizantes. Falas rápidas, entrecortadas, como falas de verdade são. É uma peça, oras, a mímese perfeita da fala humana, Aristóteles totalmente orgulhoso ou se suicidando eternamente no céu ou inferno que se encontra (talvez inferno, por ter dado beijos em homens com ou sem asfalto). Os temas abrangem caminhos enormes e reflexões ainda maiores. Me movimentou até aqui, nessa ínfima gota de meu suor, e me movimenta ainda mais. Porque em mim houve um mergulho, me senti o homem que beija o morto, me entendi assim. E entendi a bondade que o personagem Arandir sentiu, e entendi a grandiosidade de um beijo no asfalto. Senti, enfim, a dor da incompreensão e das jaulas fálicas de um mundo mentalmente castrado e domesticado erroneamente. 


Imagine você, o ápice da bondade humana: doar seu beijo ao homem que pede em seu único momento. Doar, ao homem moribundo, o filete de alegria e prazer para suportar a dor. Ou talvez uma certeza, Um carinho. Uma réstia de amor. Mas não é disso que se trata. Não podemos ser bons assim. O homem bota peso nas costas do próprio homem. E ele tem sempre que ser apto para carregar, qualquer deslize, qualquer piscadela, é o fim como um beijo no asfalto. A eterna existência dos homens são homens que agonizam no chão e outros homens que negam o beijo derradeiro, ou os raros que realmente os beijam e que são julgados e mortos, enfim, banidos do império dos machos. É a voz sentimental calada, é a veia poética esturricada pela falta de alimento. Boca é pra chupar. Pra falar palavrão. Pra morder lábio de fêmea e teta. Poesia não transcorre dessa boca, não de boca que não sorve poesia, o asfalto seca, veias abertas do solo gritante, sem beijos, sem piedade. Raro ver homem se abrindo pra homem. Raro ver choro de homem, lágrima na barba, lágrima na masculinidade. A única coisa que chora é a cabeça do meu pau, ouço. Sim.




Duvido de minha posição de homem. Figura masculina tive em momentos diferentes e não dei atenção a elas. O futebol nunca fez parte do meu vocabulário ou vontade. Tampouco brigar. Tampouco pegar mulher como se pega o lixo que estourou no chão. Mijar envolta de si e do que é seu nunca me foi algo a passar pela cabeça, marcar território como bom macho alfa. Ser másculo, ser duro e inflexível. Em mim sempre brotou a poesia, a música, a sensibilidade, a observação. Homem age, eu olho. Homem é bem sucedido, eu falho em tanto. Duvido, se é isso ser homem, do que sou. Viadagem, devem pensar. Pensem.

Se isso for homem, essa virilidade azeda e falsa, essa selvajaria acéfala e repetitiva, essa brutalidade calosa e enrugada. Se é isso ser másculo, o soco sempre pronto e certeiro entre os dedos, os dentes presos com xingamentos e putaria, os paus sempre muito duros e enormes, briga de falos, potências sobre potências. Se é isso não sou isso. Sou o resto disso. O resto do que ser homem é. Sou o intermédio, sou sem remédio, enfim. O homem me refuta de seu clube. Tem que ser mais homem, rapaz.

Sinto pena das vendas nos olhos que choram por dentro, dos músculos estourando que tampam o cérebro, do sorriso desesperado pro espelho acreditar. Esse clube de machos com paus em riste, proibido menor de vinte centímetros pra entrar. Sinto pena da prisão que o homem se encarcera pra provar ser homem pra si mesmo. Porque os outros nem estão ligando. Ele precisa da aprovação dele, apenas. O homem não produz lágrimas ou sentimentos. O homem não se abre para amigos, nem amigos muito íntimos ele tem. O homem de verdade só pode prosperar, não existe falência, não existe inércia, você é um homem ou um rato? Seja homem, levanta. Seja homem, não humano.


É muita coisa em cima do homem e aquele que não conseguiu evoluir músculos para carregar o fardo que a si mesmo impõe, aqui não vive. A tacha de suicídios entre homens é a maior, os homens são insatisfeitos consigo mesmos, como? Talvez o desenho que esperam de si não é o que consigam. Talvez a criação de ser homem seja transcendente demais, seja um ser perfeito demais para nós alcançarmos, o homem é um mito. Porque às vezes não se consegue ser homem e falhamos sendo humanos, acontece bastante. E vem o julgamento do outro, e vem a difamação interna e externa, e vem os questionamentos que todo um percalço de autocriação traz.  O homem é fruto do homem.  O homem é o homem do homem (Plauto e Hobbes que me perdoem). O homem é sua própria vítima. O homem é tão homem que às vezes se cansa. E à noite, no escuro atrás de nossas pálpebras, o homem se deixa atropelar e pede, dolente e ensanguentado, o beijo a outro homem.

   Leia mais sobre o assunto: https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/pelo-direito-de-broxar-falir-e-ser-sensivel-campanha-pede-que-homens-libertem-se-do-machismo/

 Ou só veja o vídeo:



No final não falei da obra do Nelson Rodrigues. 
E falei.


Assistam o filme de  1981.

O Beijo no Asfalto - Nelson Rodrigues 




sexta-feira, 30 de maio de 2014

Green Lover (por Leo Ayuso)

Em 2011, eu acho, minha cidade, Niterói, fez um festival de música latinoamericana, na qual o nosso Paulinho Moska recebeu alguns convidados, entre eles, o argentino Lisandro Aristimuño. No show do Paulinho, deu tudo errado: a chuva caía torrencialmente fora e dentro do palco (era um palco montado na praia), colocando os equipamentos e até os artistas em risco. Fim. O show foi interrompido. Mas Lisandro ainda se apresentaria no Theatro Municipal de Niterói e eu já tinha sentido um gostinho. Gostei. Fui ver o show do moço... inacreditável, simplesmente indescritível. Lisandro sozinho tem uma capacidade inacreditável de construir uma atmosfera completamente imersiva com suas músicas. Foi quando ele anunciou, e eu meio que entendi, no meu espanhol/castelhano meia boquíssima, uma música que fez quando conheceu e conversou com as Madres de la Plaza de Mayo, as mães que perderam seus filhos na rigorosa ditadura. Lisandro murmurou alguma coisa, que ficou repetindo em looping com o troço-de-musico-que-repete-som dele. Não fez sentido. Murmurou mais uma e mais uma e o som do violoncelo que você pode ouvir abaixo foi feito inteiramente com sua voz. Quando a melodia tomou forma, meus olhos se empoçaram. Quando começou a cantar, já estava em outro lugar. Música maravilhosa e, catando ela outro dia, me deparei com essa "resenha" que achei tanto parecida com as nossas "resenhas" que resolvi pôr aqui, sem pedir mesmo, em espanhol/castelhano pra não estragar e é isso. 







"Fieldsa recomendó esta canción: “Es uno de mis temas preferidos de Aristimuño, si bien está dedicado a las Madres de Plaza de Mayo y su lucha, creo que la letra puede adaptarse a otras historias. Me quedo particularmente con esa frase que dice 'llevo la luz que nos despertó'"
La música de Lisandro te va depositando de a poco en una hamaca de algodón, pero no te lanza sino que te lleva flotando de a poco con aroma a polen en el aire y arcoiris de emociones a los ojos.
Su variedad sonora es como millares de caleidoscopios de mil formas y colores que te seducen con suavidad, con ternura, con amor, con ideas.
Es constante esa mezcla de tristeza y melancolía que te enjuga el lagrimal pero que a la vez te carga el alma de esperanza y buenos augurios, es un de enlace de sentimientos y pensamientos que parece de ensueño.
Tantos matices, tantas formas que se unen y se mezclan como acuarelas pero que nunca llegan a fundirse totalmente. Son todo uno y son casi nada, ese es su atractivo, el individualismo y la unión, todo junto convive.
Su inmedible capacidad compositiva la corona con una voz de terciopelo que encanta cual sirena y, como Ulises, nos atamos a la silla para recrear la Odisea homérica e intentar no irnos a otra parte, al menos no hacerlo más que con el pensamiento que ya resulta inevitable cuando le das play a la obra de Aristimuño.
Todas esas armas terminan por decretar con la fuerza de la convicción y la arremetida del talento que el pop no se define por un conjunto de rimas naifs y sonantes  que acaban en edo, ado, udo. En cada canción, en cada disco, Lisandro golpea las puertas de la mentira.
Green Lover es una clara referencia a una huella en la historia argentina cuando anuncia que vienen por él, que dará a luz con los libros como bandera. Pero también puede ser una canción con ideas mínimas, letra detallista y minuciosa junto a una armonía incandescente que describen una historia cotidiana que todos supimos atravesar alguna vez: entre el desencuentro y lo inentendible de un fracaso; y la expectativa y el anhelo de algo nuevo.
Entre medio se cuela un disco de los Beatles junto a una tapa del flaco, unas fotos que llorás y una carta de cosas no dichas, y ¿por qué no? una botella para olvidar y volver a empezar.
Mientras, Aristimuño sigue regalando un repertorio sin lugar para recortes en la ilusión de aquellos que creen que el medio local bastardea las expresiones artísticas, para no estar donde la música “se convierta en un envase descartable”.
Como suele suceder con Lisandro, Green Lover es una de esas canciones para días de lluvia pero que a la vez le hacen cosquillas al alma y ponen a bombear el corazón."

Por Leo Ayuso
leoayuso@undiaunacancion.com

terça-feira, 13 de maio de 2014

Memento Mori e reflexões sobre a morte

Memento Mori - Lembra-te de que és mortal;



O que é a morte? Por que morremos? Por que tememos tanto morrer? São perguntas sem resposta, mas que são também inevitáveis. Em Memento Mori, um documentário genuinamente horaciano, essas e outras questões serão exploradas. Dessa vez não tem resenha, a proposta é outra: a reflexão sobre a finitude. Divirtam-se!







A morte é o real contraditório que nos força a enxergar a vida (o caminho em aberto que temos pela frente) com a avidez e vontade de quem tem pouco tempo para percorrê-lo. A morte torna nossa vida imaginada e, com isso, cria nossos sonhos e utopias. Temos pouco tempo.





Certa madrugada me veio:

"A vida é o universo pulsante


A morte é parte da vida, não é exterior a ela e muito menos é seu oposto. -> a morte deriva da vida ou é parte inerente dela?

A manifestação quanto à vida é possível? Pois a manifestação em si já é vida.

O universo pulsante não existe, a vida sim. A vida é o universo pulsante e a relação não é recíproca. Isto por que a vida é e sempre será prioritária em qualquer relação. Ex: A vida é um bocejo. A vida é uma árvore. A vida é uma estrela. Qualquer coisa que represente algo será vida, exceto se estiver isolada ao ponto de não se relacionar com absolutamente nada, nem ela mesma. Neste caso será Deus. A vida, como prioritária ao complexo sistema de relações se coloca acima de todas as coisas. A vida é, portanto Deus. No entanto, a vida não pode ser uma entidade, visto que por mais que prioritária, não pode representar a si mesma, ou seja, se enclausurar, se embarreirar, para começar porque as barreiras fariam parte da própria vida e, depois, pois sua extensão é tal que conceber seu fim é dar-lhe sobrevida. Entender algo fora da vida, isto é, do prioritário ao universo pulsante é simplesmente contraditório com a própria noção de prioridade sobre tudo. Não há externalidades e, portanto, não há entidade. A vida é, então, Deus em sua não-forma solta, inisolável (sim, estamos criando neologismos aqui, ou seja dando vida às palavras, ainda mais além, dando prioridade de existência a elas), mas irrelacionável pois não há com o que se relacionar.

Ok... resta a questão da morte enquanto parte constituinte da noção solta de vida ou derivada dela. Não se pode conceber a morte como "tudo que é externo à vida", para começar pelo simples fato de entendermos a morte, e, além disso, pela evidência óbvia do imenso - IMENSO - impacto que a morte tem sobre a vida. Se apenas considerarmos nós, seres humanos isolados conceitualmente para fins "metodológicos", acho que isso fica muito mais que claro. Não é concebível, portanto, que a morte se abstraia da vida. É, no entanto, parte constituinte fundamental da experiência de vida - tudo morre, cedo ou tarde, de animais e plantas, a estrelas e, provavelmente, átomos e as partículas mais elementares da constituição da realidade. É desta experiência de vida que decorre nossa morte, isto é, morremos porque vivemos ou morremos apesar de vivermos, sendo a morte uma face da vida? Talvez ambas as opções estejam erradas, posto que a vida não permite a ausência e a morte seja parte da experiência de viver (se constituinte ou decorrente dela, já não importa) e a morte não exista, portanto, enquanto ausência, concluo que a vida só pode ser absoluta e a morte efetiva - enquanto destituição de vida  (ou seja, perde sua capacidade de influenciar, perde sua relevância, sua característica a priori enquanto algo existente) - não pode existir, já que a vida é e será sempre relevante.

De uma forma mais resumida, posso falar, mais especificamente, que nenhum ser (e encaro ser aqui como qualquer coisa dentro do universo pulsante, qualquer coisa que tenha vida a priori, que seria "tudo", na verdade) deixa ter relevância em momento algum.

Sua presença enquanto vivo é o suficiente para deixar uma marca efetiva nos fluxos que subjazem a vida."

Meses depois, uma conclusão: Se a morte é a perda do estado de consciência, ela é altamente egoísta e individualista; nada morre porque nada jamais deixa de existir (ou de ter existido [ou de vir a existir]).



Morro? Pois então, vivo!

segunda-feira, 12 de maio de 2014

“Quem quer entender o destino, tem de sobreviver a ele.” (re-resenha)



Jostein Gaarder é um escritor e filósofo norueguês, conhecidíssimo pelo seu livro O Mundo de Sofia, entretanto, a nossa relação se estreitou devido a uma outra carta, escondida não somente sob a manga, mas entre prateleiras de livrarias e sebos. Depois de anos de encontros e desencontros, numa tarde de folga no Centro da cidade, encontrei o curinga rindo ironicamente debaixo de uma pilha de livros, e por fim consumimos a nossa relação objeto-espectador / livro-leitor.
O Dia do Curinga é uma das obras que eu carregaria no bolso sempre, tivesse eu uma versão pocket sua. As primeiras páginas surtiram o mesmo efeito mágico de quando eu havia lido-as cinco, seis anos atrás, o restante era um oceano desconhecido. O livro não trata de Filosofia em si, como em O Mundo de Sofia, mas é filosófico, assim como toda a obra de Gaarder. Suas páginas carregam a história do garoto Hans-Thomas, que sai de Arendal, uma pequena cidade norueguesa, em direção à Grécia junto de seu pai “à procura da mulher que os deixou oito anos antes”, uma mãe-esposa que se perdeu no mundo para se encontrar, e nesse trajeto dentro de um fiat vermelho cruzando o Velho Continente até a Antiga Grécia dos olimpianos, o garoto participa de conversas com seu pai a cada “pausa para um cigarro” que vão desde maldições de família à desolação da bocarra de ferro do Tempo que devora a tudo e a todos, ele descobre a bebida púrpura e os peixinhos coloridos nos Alpes, e recebe – devido aos acasos do Destino – dois pequeninos presentes que o acompanham ao longo da viagem: um pequeno livrinho com letras minúsculas e ilegíveis, e um pedaço de vidro que lhe cai como uma lupa.
É através do livrinho que Gaarder nos conta uma história dentro da história e outra dentro desta, e no fim tudo vem a se encaixar como cartas espalhadas aleatoriamente pelo mundo, mas que começam a serem organizadas por uma mão invisível que trança as vidas no Destino. A história de Hans-Thomas, dos peixinhos, da bebida e das cartas de paciência de Frode é por vezes tão lúdica, assim como o próprio Curinga, tão fantasiosa que no fundo, já preso à narrativa reflexiva e suave, você se pega rezando pela realidade dessas estórias-histórias, agarrando-se com todas as forças nessa trança invisível.
Outro aspecto peculiar do livro – agradabilíssimo aos amantes de baralho – é a organização de seus capítulos, cada um sendo uma carta do baralho, e entre eles, a carta-capítulo do curinga que nos traz o verdadeiro ponto de revolução da história, o ponto inicial da evolução do herói, um ponto muito anterior a Hans-Thomas mas que tudo tem a ver com o garoto.

O Dia do Curinga é um daqueles livros que te deixa com o coração apertado conforme as suas páginas vão acabando, é um livro que te deixa com um brilho nos olhos quando o menciona, que te deixa – propositalmente – com muita pulga para pouca orelha, e isso é o mais gostoso, essa relação ativa que o leitor desenvolve com a história e suas reflexões, afinal, Gaarder se diz escritor e filósofo, e ele faz por merecer tais títulos. A grande jogada do curinga, ao meu ver, é você conseguir deslocar daquele universo as capacidades de observação e sensação, trazendo-as para cá. O dia do curinga encanta, porém encanta muito mais àquele que se dá ao prazer de observar, admirar e sentir os pequenos detalhes da vida, do cotidiano, tornando-se assim mais um curinga, mais uma carta fora e ao mesmo tempo dentro do baralho.


domingo, 27 de abril de 2014

Vivendo ao vento

"Le vent se lève
Il faut tenter de vivre"

Em tradução livre de quem apenas começou seus estudos no francês:

O vento sobe
Deve-se tentar viver.

Os versos de Paul Valery são a coluna dorsal e o cordão umbilical de Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, no original), última animação de Hayao Miyazaki. Ao mesmo tempo em que dão delicada estrutura à elaborada narrativa, também conectam a uterina animação do diretor japonês à realidade, ao público e, principalmente, à si, estabelecendo uma forte ligação autor-obra.





Le vent se lève


Diferente de todos os seus filmes anteriores, Vidas ao Vento não possui quase nada de mágico ou sobrenatural. Miyazaki, conhecido por seus monstros mitológicos, seus universos impressionantes e maravilhosos, seu dom natural para lidar com o sobrenatural, opta por retratar a vida real de um personagem real, tornando Vidas ao Vento sua primeira e única cinebiografia, apesar de bem ficcionalizada, é verdade. As partes mágicas se concentram nos sonhos do personagem, que nos lembram a incrível capacidade criativa do diretor, ao mesmo tempo em que nos coloca uma firme clivagem em relação às suas outras obras: se nelas a magia e o incrível eram comuns e difusas no "mundo real" em que seus personagens se encontram, agora, em Vidas ao Vento, eles pertencem ao mundo dos sonhos. Mas isso não despe o filme e o mundo nele retratado - o "nosso" mundo - de encanto. Pelos olhos e mãos de Miyazaki, o cotidiano e o mundano ganham delineações maravilhosas e cativantes. A crueza da dor e da tristeza das tragédias, nunca escondidas em seus filmes, é pronunciadamente bela. Os sonhos e conquistas, distintamente doces.


O diretor conta a história do designer de aviões Jiro Horikoshi, que projetou o Mitsubishi A6M Zero durante a Segunda Guerra Mundial. O modelo foi considerado um marco na história da aviação por seu design avançado e de grande eficiência. A história de Jiro, no entanto, se funde com um Miyazaki também, em parte, ficcionalizado. De fato, penso que talvez não seja possível compreender todo o significado do filme sem conhecer um pouco da história do diretor.


Hoje com setenta e três anos, Hayao Miyazaki nasceu em uma época em que, há não muito tempo, o ser humano havia descoberto a possibilidade de voar. Ele pertence a uma geração que provou em primeira mão as maravilhas e os encantamentos da aviação incipiente. Imagine o leitor o assombro ao ver um avião pela primeira vez, o quão incrível não deveria ser aquilo que hoje é tão natural para nós? O quão fascinante? Somando-se a isso, seu pai era dono da fábrica de peças de aviões Miyazaki Airplane, o que o aproximou ainda mais das asas. Sua paixão por aviões está evidenciada ao longo de sua filmografia, onde há grande recorrência à aviação e à paixão de seus personagens por voar. Voltando rapidamente ao tema do filme, a fábrica de seu pai fez peças para o Mitsubishi A6M Zero, projetado por Jiro Horikoshi, o que já estabelece um contato inicial entre autor e personagem e dá ao filme outro significado.


Percebe-se logo que Jiro é Miyazaki e Miyazaki é Jiro. Isso fica mais evidente quando temos em mente que o diretor controla todos os passos da produção de seus filmes, muito embora tenha uma equipe que o auxilie. Assim, ainda utilizando-se bastante da animação à mão, Miyazaki fiscaliza frame por frame para ter certeza que seu filme atinja seu padrão de qualidade. Isso e o fato de seus filmes e seu Studio Ghibli terem feito sucesso em seus próprios termos e não em outros, ditados pela indústria cultural, permitem ao diretor controle absoluto de suas criações. De fato, não é apenas Jiro Horikoshi que é Hayao Miyazaki, mas cada aspecto do filme, cada cena, cada diálogo, cada detalhe, cada soprar de vento.

O vento, aliás, localizado na centralidade do filme, é a força motora que faz o enredo caminhar. É o vento que leva e carrega e é trazido pelos aviões. É o vento que, participante ativo, proporciona os principais eventos na vida do personagem. Repetindo: o vento é a força motriz que carrega o enredo, mas não só. É também o que dá força aos personagens, sobretudo à Jiro.


O vento que sobe é o sopro na alma.


Il faut tenter de vivre

Tendo nascido durante a Segunda Guerra Mundial, Hayao Miyazaki, mesmo muito novo, experimentou os terrores da guerra quando sua cidade foi alvo de bombardeio, o que acabou destruindo-a em um incêndio. Tinha quatro anos então, mas jamais esqueceu o crepitar e o alaranjado do fogo no céu escuro. Talvez por isso tenha adotado uma filosofia humanista e pacifista de forma tão firme, coisa que se reflete constantemente em seus filmes. Vidas ao Vento dialoga com isso. De fato, ao escolher um personagem histórico como protagonista, personagem este que fabricava aviões para um Japão em guerra, Miyazaki fez uma escolha provavelmente proposital, não apenas para homenagear aquele personagem, mas também para discutir os aspectos morais de se construir aviões como armas de guerra, mas, ao mesmo tempo, ser contra a guerra. Lembrando que o próprio Jiro Horikoshi, o histórico, era contra o envolvimento do Japão na Segunda Guerra Mundial. Em uma de suas anotações, Jiro escreve sobre a guerra:


"O Japão está sendo destruído. Não posso fazer outra coisa senão culpar a hierarquia militar e os políticos cegos por arrastar o Japão para este caldeirão infernal de derrota"


Como em outros filmes, Miyazaki entra numa área cinza da moral. Sabendo que se faz armas de guerra, é certo continuar desenhando e fabricando aviões e, mais ainda, projetando inovações que melhorem sua eficiência? A mim, Jiro responde, secretamente: Meu maior sonho é fazer aviões. Foi com isso que sonhei quando criança e era isso que respondia quando me perguntavam o que seria quando crescer. Não achava que aviões servissem como armas, pelo contrário, sonhava com grandes aviões que transportassem centenas de pessoas pelo mundo. Aviões são lindos, sussurrava, para quem quisesse ouvir, são os homens que fazem deles armas de guerra, mas isso não significa que não devamos construí-los. Aviões são sonhos que eu tenho a oportunidade de tornar realidade!

Jiro sabia das consequências de suas criações: "nenhum deles voltou", diz, ao final, melancólico e exausto, sobre seu Zero, sua obra prima, mas sabia também que deve-se tentar viver, da melhor forma possível.

Em seus sonhos, Jiro dialoga com um dos pioneiros da aviação, Giovanni Caproni, que lhe questiona, ao ser confrontado com o mesmo dilema moral: "você prefere um mundo com ou sem pirâmides?", quer dizer, as coisas grandiosas, que são feitas a custo de sangue e suor, merecem ser feitas?

É uma questão polêmica e, quer concorde com ela ou não, é uma discussão que o diretor está propondo. Em Vidas ao Vento, não há espaço para o maniqueísmo: as coisas são como são e os julgamentos de valor são de cunho pessoal e subjetivo, não inerentes à realidade. Em certo momento do filme, Miyazaki (que, aliás, tem diploma em Ciência Política e Economia) destaca a enorme desigualdade social no Japão da época, que investia fortunas para fazer aviões de guerra enquanto seu povo passava fome. As coisas são como são e a vida, muitas vezes, é uma triste realidade, violenta em muitos sentidos... Mas, como sempre, deve-se tentar viver.

Vivendo


O fato é que o último filme de Miyazaki, e eu digo último não apenas por ser o mais recente, mas também pelo diretor ter anunciado a aposentadoria após seu lançamento, nos transporta diretamente para o Japão da primeira metade do século XX: aquele país agrário, atrasado tecnologicamente, que viria a se tornar um importantíssimo pólo tecnológico mundial. Vemos os costumes mudando: as ideias e hábitos ocidentais se infiltrando na cultura tradicional japonesa, a carne tomando lugar do peixe, o café substituindo o chá... um retrato muito vivo de uma época passada. E, acima de qualquer coisa, com personagens muito vivos, com emoções e desejos e falhas muito, muito humanas.
Vidas ao Vento, com sua belíssima animação, de movimentos fluidos (sobretudo os movimentos do vento, maravilhosamente trabalhados) e estonteantes paisagens, nos carrega em seu voo pela vida de Jiro Horikoshi e pela alma de Hayao Miyazaki e nos presenteia com um tocante presente de despedida do diretor: uma verdadeira ode à vida.