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quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Sobre Violência, Ensaios e Crônicas

Fotografia que rendeu o Pulitzer e o suicídio a Kevin Carter


Calhou de eu estar lendo o “Sobre fotografia” da Susan Sontag quando meu professor de fotojornalismo cobrou uma resenha do filme “Morrendo para Contar a História”. O filme gira em torno da vida de um jovem fotojornalista de guerra que morre por algum motivo que só será revelado pelo final. Enquanto se constrói o suspense, são exibidas entrevistas e depoimentos de vários fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas de zonas de conflito. A questão é que a cabeça por trás da realização do filme é justamente a irmã do falecido jovem fotógrafo, que se coloca como uma espécie de personagem em um drama difícil de engolir, por mais que seja, no fim das contas, real… É sempre difícil de tragar dramas televisionados. Os reality shows nos deixaram entorpecidos pra esse tipo de coisa. Seja como for, a narrativa é cheia de impressões emocionadas que colocam o garoto, assim como os demais jornalistas, como mártires da comunicação, democracia e todos os valores ocidentais que nos são tão caros.
Lendo Susan Sontag, tudo muda de esquema. Em seu ensaio Na Caverna de Platão, ela explora a relação do mundo contemporâneo com a imagem, pensando na fotografia como cada vez mais fundamental e fetichista em nossa torpe interação com o externo. Tudo isso é importante, mas Sontag chega num ponto nevrálgico para mim, que muda minha compreensão do filme e me dá os merecidos socos na cara, que alguém com a quase obscena e absurda pretensão de ser fotógrafo nos dias de hoje - ou seja, viver da imagem alheia na sociedade do espetáculo - deve levar.


Subvertendo o sentido da fantástica foto de Maurício Hora

Fotografia é violência. Fotografar é, intrinsecamente, um ato de agressão. “Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento - e, portanto, ao poder”. Ela é irredutível. “Existe uma agressão implícita em qualquer emprego da câmera”; “Existe algo predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos. Assim como a câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um assassinato sublimado - um assassinato brando, adequado a uma época triste e assustada”.
Enquanto lia o ensaio, lembrava de mim mesmo e de minhas ainda parcas experiências com a câmera. Lembrei de um caso na ocupação da reitoria da UFRJ. Os alunos, sobretudo os que moravam no alojamento, ocuparam a sala do reitor contra os absurdos a que eram submetidos, a falta de bolsas e as condições sub-humanas do programa de moradia da universidade. Conseguiram uma reunião com o então reitor Carlos Levi e, entre tantas falas, uma menina moradora de uma república universitária, relatou os muitos casos de estupro e abuso nas repúblicas. Todas as mulheres do recinto estavam aos prantos. Eu, munido de câmera, me senti como numa analogia de Susan Sontag, quando ela faz a comparação entre a câmera fotográfica e a arma. Carreguei, mirei e não pude disparar. Como o assassino que desiste no último instante, enxerguei a violência que seria me apropriar daquelas mulheres em seu momento mais vulnerável. Percebi que, para além de já ser um péssimo jornalista, seria também um péssimo fotógrafo. Perdi o registro.
O que me leva de volta ao filme. A narrativa, por mais que se queira dizer que os fotógrafos são mártires, conta a história de agressores. A forma como o garoto morreu, após levantadas as cortinas do suspense, é absolutamente simbólica. Um helicóptero americano metralhou por engano - é sempre por engano - um prédio cheio de inocentes. A imprensa ocidental compareceu para fazer o registro. Ao vê-los, os moradores enfurecidos canalizam toda sua raiva contra os jornalistas. Pedras voam e muitos são pisoteados. Dan Eldon - acabo de lembrar o nome do garoto - não morreu sozinho. E não morreu à toa. Em outro depoimento, Don McCullin, o renomado fotojornalista que registrou o Vietnã e mudou a forma como se fotografava a guerra, conta a história de como deixou de registrar o tema. Estava no Líbano quando um prédio desabou, acredito que por uma bomba. Uma mulher chorava intensamente. Don apontou-lhe a câmera. A mulher viu e, enfurecida e justificadíssima, atacou. Chutes, socos, tapas. Don ficou em estado de choque. Quem sabe o que aquela mulher não acabara de perder? A família, a casa, e quê mais? E aquele homem lhe apontava uma câmera! A violência nunca foi tão evidente. Infelizmente para Dan Eldon, não foi uma mulher, mas uma multidão que viu em sua própria violência justificativa.
Susan Sontag, ao falar de violência, consegue, em sua própria forma de escrever, ser violenta. Ler seu ensaio é doloroso, machuca e, de uma forma masoquista, é também extremamente prazeroso. Susan faz afirmações categóricas, não se incomoda tanto em basear os argumentos porque sabe que são verdade. É a base ensaística que Starobinski descreve e que ela domina tão bem. Como Montaigne, “agarra pela cabeça” o tema mas, não satisfeita, o mastiga e cospe, deixando um leitor ferido, moribundo e encantado. Sobretudo se o aventureiro for fotógrafo ou, pior ainda, aspirante a fotógrafo. Mergulha dentro de si para afirmar o que, no fim das contas, soa como óbvio. Como coloca Starobinski, a relação indissociável entre o subjetivo e o objetivo.
Assim, Susan “ensaia a si mesma” e narra seu primeiro choque diante de uma “imagem do horror”:


“O primeiro contato de uma pessoa com o inventário fotográfico do horror supremo é uma espécie de revelação, a revelação prototipicamente moderna: uma epifania negativa. Para mim, foram as fotos de Bergen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945. Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real - me ferira de forma tão contundente, tão profunda, tão instantânea. De fato, parece-me plausível dividir minha vida em duas partes, antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos) e depois, embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu compreender plenamente do que elas tratavam. (...) Quando olhei para essas fotos, algo se partiu. Algum limite foi atingido, e não só o do horror; senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas uma parte de meus sentimentos começou a se retesar; algo morreu; algo ainda está chorando.”


Evandro Teixeira evidenciando a banalização da violência
Do seu mais íntimo subjetivo para o objetivo. Susan Sontag disserta agora sobre como há um preço alto a se pagar pelas imagens do horror: a banalização da violência e do choque. Isso faz parte da maldade da fotografia. Da exposição da guerra à banalização da mesma. Se alguém vir suficientes cabeças decapitadas, não se surpreenderá mais com elas. Como coloca Susan, “após uma repetida exposição a imagens, o evento também se torna menos real”. A perversidade da imagem… a criação dos simulacros e a mitificação da realidade - inalcançável por si, banalizada e tornada onírica pela repetição ad infinitum de si mesma. A foto é, hoje, como bala da metralhadora que é a câmera. É só segurar o gatilho que cada vez mais shots por segundo são disparados, encapsulando e violentando a própria violência. Destruindo a inocência e distribuindo socos e pontapés. Susan Sontag afirma, categórica, que a foto nada faz para impedir a guerra e a violência se não houver uma predisposição ideológica para tal. Ela diz algo na linha de “as fotografias não mudam nada, só reforçam o que já existe”. Mais que isso, para ela, fotografar é ter interesse pelas coisas como são, manter o status-quo.
De volta ao filme, a justificativa que dão os fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas de guerra é que eles fazem o que fazem para poder mudar as coisas. Talvez, aos olhos de Sontag, seja questão de excesso de ingenuidade ou falta de honestidade da parte dos personagens. Seja como for, o ensaio de Susan, embora inconclusivo quanto aos muitos temas que aborda, parece sugerir que as fotografias potencializam, para bem ou para mal, a violência da guerra, que é já violência em seu estado mais puro. O duro registro violentará os violentados e, ou adormecerá o mundo globalizado acostumado com a barbárie ou reforçará os discursos já existentes que se utilizarão da violência da guerra concretizada na violência da foto para dizer um basta à violência. Esta última frase, confusa que soe (eu mesmo tive que ler algumas vezes enquanto escrevia), é tocada, de certa forma, por Rubem Braga na crônica A Menina Silvana.
Braga na guerra. Péssimo jornalista, pior seria soldado. Tinha coração demais pra essas profissões desastrosas.


Do cenário escatológico de pilhas de corpos e flashes de tortura e dor do ensaio de Susan Sontag, passamos ao intimismo analítico do Velho Braga. Como uma transição abrupta de uma das últimas cenas de Apocalipse Now para uma filmagem caseira do enterro de um ente querido, a sensação que dá ler ambos os textos em seguida é a do absoluto contraste. Enquanto os dois tocam no tema da violência, sobretudo a violência na guerra, a escrita de Sontag é explosão. Do Braga, desvelamento. Cometa e borboleta. Enquanto Susan Sontag faz um panorama amplo e múltiplo, Braga lida com o que os olhos veem e o coração sente. É um zoom de teleobjetiva numa multidão.
O Braga, conhecido por ser cronista com pedigree, ou quase, como coloca Antonio Candido, se encontrava, durante a Segunda Guerra Mundial, com a Força Expedicionária Brasileira na Itália, como correspondente de guerra. Ele mesmo é o primeiro a entender essa posição, essa da “confortável guerra de correspondente”. Como Sontag, o Braga fala da inevitável banalização da violência. No entanto, a aborda de uma forma distinta.


“Vai-se tocando, vai-se a gente acostumando no ramerrão da guerra; é um ramerrão como qualquer outro: e tudo entra nesse ramerrão - a dor, a morte, o medo. o disco de Lili Marlene junto de uma lareira que estala, a lama, o vinho, a camarolo, a brutalidade, a ajuda, a ganância dos aproveitadores, o heroísmo, as cansadas pilhérias - mil coisas no acampamento e na frente, em sucessão monótona.”
O cronista fala, como observa Antonio Candido, de forma íntima e, em a A Menina Silvana, Braga parece começar num misto de conversa e carta com o leitor, para depois explodir. Mesmo no turbilhão da guerra e no coração engessado pela violência, o lampejo de uma pequena italiana ferida, desacordada, é o suficiente para tirá-lo do torpor. Aqui, a vítima, antes cadáver inominável e irreconhecível do ensaio, ganha nome, idade, corpo, identidade. “Silvana Martinelli”, “10 anos de idade”, de “corpo alvo e fino que tremia de dor”, “quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo”. Diferentemente do ensaio, que sobrevoa os corpos mutilados e sem vida, a crônica de Braga descreve a menina Silvana, a humaniza, a torna palpável. A poesia própria da crônica, como aponta Candido, em oposição à, talvez, análise ensaística. A proximidade emocional e física que nos permite a literatura, sobretudo a linguagem corrente usada na crônica.
Toda a violência de Susan Sontag me machucaram até o limite, mas foi a delicadeza da menina Silvana e a revolta emocionada de Rubem Braga que me arrancaram (e me arrancam) lágrimas. Talvez a potência da palavra se sobreponha à imagem neste sentido. A imagem fotográfica é o que é. A palavra é construção, cadência, um crescendo trágico ou cômico, mas que leva. A fotografia permanece. E que tristeza concluir isso - se é que há conclusão em alguma coisa - ainda aspirando ser fotógrafo. Não tarda, a triste epifania me alcança. Mas divago.
Braga interage com a menina. Ela o olha silenciosamente. Ele protege seus olhos da luz forte. Ela continua a olhá-lo. Conversa com ela através de sua conversa conosco. Com ela e com todas as Silvanas moribundas e de frágil corpo doente.


“Às vezes um homem recusa comover-se: meninas da Toscana, eu vi vossas irmãzinhas do Ceará, barrigudinhas, de olhos febris, desidratadas, pequenos trapos de poeira humana que o vento da seca ia a tocar pelas estradas. Sim, tenho visto alguma coisa, e também há coisas que homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres - sim, por mais distraído que seja um repórter, ele sempre, em alguma parte em que anda, vê alguma coisa”.


A delicadeza de Leonardo Ramadinha. Me lembra o Braga. Cada um com sua borboleta. Cada um com sua pedrada.

Rubem Braga coloca o outro lado da violência. Enquanto Susan Sontag se foca nos causadores, Braga pensa nos que sofrem, incluindo ele próprio e os repórteres, os jornalistas, e, porque não, os fotógrafos. Don McCullin jamais fotografou zonas de conflito novamente depois do incidente com a senhora no Líbano. Aquilo o chocou profundamente; saber que tinha agredido e violentado aquela mulher. É um jogo de perdedores… Antonio Candido comenta essa mistura de sentimento e crítica social, entendendo a crônica também como ambiente de engrandecimento e aprendizado para o leitor, embora seja, afinal, considerada estilo menor. Para ele, isso a liberta dos rebuscamentos e sofisticações que afastam o texto do leitor. Eu concordo. Nesta crônica - e em tantas outras - Braga toca no nuclear; ele se torna, para usar uma frase que li em algum livro de poesia que não comprei, ferro enferrujado cravado em carne exposta.
E continua, no que se torna um verdadeiro manifesto.


“Há 13 anos trabalho neste ramo e- muitas vezes não conto. Mas conto a história sem enredo dessa menina ferida. Não sei que fim levou, e se morreu ou está viva, mas vejo seu fino corpo branco e seus olhos esverdeados e quietos. Não me interessa que tenha sido inimigo o canhão que a feriu. Na guerra, de lado a lado, é impossível, até certo ponto, evitar essas coisas. Mas penso nos homens que começaram esta guerra e nos que permitiram que eles começassem. Agora é tocar a guerra - e quem quer que possa fazer qualquer coisa para tocar a guerra mais depressa, para aumentar o número de bombas dos aviões e tiros das metralhadoras, para apressar a destruição, para aumentar aos montes a colheita de mortes, será um patife se não ajudar.”


Aqui ele entende a inevitabilidade da violência… A guerra não é algo que possa ser evitado, é um fato, um fato de violência que, como um incêndio na floresta pode ser controlado com outro incêndio localizado que lhe tire o combustível, precisa de violência para se extinguir. E, embora Braga jamais toque nisso, talvez nesse sentido a violência da fotografia seja necessária. Encerra a crônica da seguinte forma:


“Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (sem importância nenhuma no oceano de crueldades e injustiças), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (mas oh! hienas, oh! porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, oh! altos e poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa menina camponesa?), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (oh! negociantes que roubais na carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?) - por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.”

Afeto e dignidade da família de um carvoeiro em situação de escravidão.
O olhar e a sensibilidade são de João Roberto Ripper


Setenta anos depois, estava eu lendo e me arrebatando com o Velho Braga. Arrasado. Profundamente emocionado. Antonio Candido dá mais algumas características para a crônica. Uma delas é a gratuidade. Uma crônica não é uma notícia, ainda que venha dentro do jornal. Não traz a “informação” que pede a produção jornalística, turva, ressaqueada que seja essa ideia (perdoe o recalque de um aluno incompetente de jornalismo). Oscar Wilde disse, no prefacio d’O Retrato de Dorian Gray, que a arte é coisa absolutamente inútil. Bem depois, chega o Marcelo Jeneci na mesma linha cantando que “o melhor da vida é de graça”. De fato, pouco importa a menina Silvana. Pouco importa que Braga a tenha visto. Pouco importa que tenha morrido ou vivido ou sofrido. Silvana não foi ninguém. Não foi notícia. Braga, com a crônica, transforma o gratuito em visível. A borboleta amarela que persegue na rua, a mulher com medo de avião que segura seu braço no voo… Ironicamente, talvez estas coisas sejam mais reais do que as informações priorizadas pelos jornais. Silvana foi e será sempre mais real do que as estatísticas dos mortos na guerra. O cotidiano nos diz mais respeito do que as conjecturas dos especialistas. Mas divago novamente.
Outra característica apontada por Candido é o caráter efêmero da crônica. Por estar no jornal, é algo de passageiro, de temporário. E isso é belo, por sua liberdade e capacidade de se dissolver no ar, sem deixar registro. Mas, ao mesmo tempo, dói. Existiria violência maior do que ter a consciência de que a menina Silvana e o corajoso manifesto de Braga estariam, no dia seguinte, embrulhando cocô de cachorro em Copacabana?