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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Pilar de José





     Calhou ter o nome assim, Pilar, coisa que única das que não controlaria em vida e que a seguiria pro resto de sua existência, coisa boba um nome. Mas assim fez-se Pilar e o poeta-escritor levou ao pé da letra. Em sua pluralidade mental, em seus caminhos, descaminhos e bagunças organizadas, basificou sua arquitetura torturada em Pilar. É como dizem os livros antigos, aquela história da casa que não para em pé quando feita sobre areia. Pilar é ferro, puro, bruto e brilhante. E sim, literalmente, é o sustento de José. Ouso dizer que sem Pilar, Saramago não existiria ou, ao menos, não resistiria. Num mundo criativo e efervescente de Saramago, num mundo de plurideias, subtramas e intertextos, Pilar é a conexão do gênio com a realidade. O intermeio, o canal entrelugares, no entremeio de existências, telefone sem fio de distantes constelações. Pilar seria os pés no chão, sim, mais uma vez: a base. Daí a importância do nome "José e Pilar", pra lembrar que o um não é um sem o outro, um "um" plural. E percebemos isso na medida em que essa maravilhosa obra de arte avança: um ser é inerente ao outro, extremamente dependente, numa sintonia assustadora de acidez, humor e engajamento. Comecemos, então, pelo nome e depois dane-se a ordem. Do nome posso dizer, além do que já disse, não o acho bom o bastante. É claro que ele passa a existência de Pilar ao lado de José, mas deveria ir além, se fosse possível ir além. Se fosse possível que as duas palavras coexistissem, aí sim seria perfeito, não uma do lado da outra, dando a entender que a primeira seja superior, jamais. O nome deveria ser um híbrido, como eles os são, um ser uno, semi-divino.

     Meus sentimentos com esse documentários resumem-se, espelhados nos infinitos sentidos dessa palavra: amor. Que objeto mais multifacetado é o amor, e é por meio desse espelho quebrado que conhecemos o íntimo de Saramago. O amor une os troncos antigos de seus dedos aos dedos de sua mulher. O amor o faz subir os montes ao lado de Pilar ouvindo suas histórias e rindo. O amor sai da ponta de suas unhas em seu computador a cada ponto final, a cada virgula. O amor o faz brigar, o cansa, o pesa. Há carinho em todos os toques, em todo estalar de língua, em todo pessimismo antigo desse ser superior. E somos atingidos em cheio por esse apaixonante documentário, e somos postos à prova face a esses dois gigantes que aprenderam a ser um só.

     Munido de imagens poderosas, edições fantásticas e roteiro poético, "José e Pilar" nos faz triste, pois cada hora passada com o prazer que o documentário proporciona é uma hora a menos do mesmo prazer e aí ficamos presos nesse paradoxos: porque seres como Saramagos deveriam ser (e sim, são) eternos. Depois que o assisti pela primeira vez senti-me perdido. Tanta coisa pra ruminar, tanto som e fúria, tanto sangue e tutano, tantas frases tão corretas e tão facilmente proferidas pelo frágil gigante português. Terminou-se como sair bailando de um sonho, os olhos recusando-se a abrir já abertos. De tão impossivelmente perfeita a obra e eu, de tão maravilhado, me vi perguntando a mim mesmo: É um documentário? Não é um romance? Veja que pergunta estúpida, leitor, a qual me veio a resposta direta, como a língua da chibata quente nas costas nuas, na voz do próprio José: mas é claro que é um romance. Mas é claro. Cheia de poética, metáforas, intrigas fantásticas, "José e Pilar" é o romance perfeito: uma realidade recheada de surrealismo, de neologismos, de paronomásias e outro termos já muito recauchutados e empregados a torto e a direito. É o romance perfeito, além da perfeição estética, por ser a mais pura amostra da realidade, do amor (aquele ser muito odiado e tantas vezes tomado como invenção) mais inflexível do mundo e, ao mesmo tempo, mais delicado.

     Vemos nas veias das mãos e do pescoço, no branco que toma a íris e os cabelos, nas manchas na pele e nos dentes, a delicadeza quebradiça de Saramago, um deus escravo do tempo. Não o duvido escrever em seus braços a pensar serem papéis antigos, e realmente o fossem: papiro antigo da mais intangível sabedoria. Aos poucos o mestre, cansado pelo peso de si, mesmo sustentado por Pilar, esfarela-se. Vê-se em meio a um oceano de afazeres e a velhice, mão maldosa que o puxa para o afogar-se, revelando sua morte a cada olhar mais profundo pro espelho. O filme conta a batalha interna de Saramago consigo mesmo para conseguir ser mais forte do que o externo e, aí sim, uma batalha externa de Saramago com as intempéries, as viagens, as quedas de braço mentais com sua literatura, os confrontos com os outros. Chega tamanha a estafa que vemos o mestre quase fenecer sob nossos olhos, e não duvido que tenha realmente ido. E que tenha voltado por Pilar. A Pilar que ficava no banco do hospital, no banco do avião, no banco do carro. A Pilar que ficava nos bancos da vida, lutando suas lutas internas, externas e lutando as lutas internas e externas de Saramago, quatro batalhas para um só ser. Chega também a hora em que os dois cansam juntos e são apenas arrastados pelo vendaval criado por eles mesmos. Lembro-me questionado pela minha mãe: Mas essa mulher dele é uma ditadora, ela vai matá-lo, o arrasta pra cá e pra lá, ele não quer fazer nada disso! Eu chamaria isso de amor bruto (tough love), mas acho que é maior que essa expressão já enrugada pelo uso. Pilar vira combustível, quando impossível de José continuar. Quando acaba o combustível, Pilar vira as próprias mãos e a própria força a empurrar José e, também vemos, José vira a mão para puxá-la quando preciso. É uma luta em dupla no mundo antropofágico da literatura contemporânea. E nesses momentos de guerra (trocando uma expressão enrugada por outra) é preciso endurecer, mas sem perder a ternura.

     O amor, como não fugir do amor nesse filme?, chega aos ápices da poesia: metáforas reais, de concreto e sutileza. Há um momento em que Pilar é condecorada (é assim que se fala? não sei se a pessoa é condecorada quando isso acontece ou se é outro termo, mas tudo bem) com uma rua com seu nome. Agora, senhoras e senhores, adivinhem que rua termina/desemboca na rua Pilar del Rio? Sim, a rua José Saramago. Outro fator belíssimo é a presença de Pilar em todos os livros de nosso autor, sendo todos os livros dedicados à sua esposa, como rosas raríssimas e únicas. Pilar permeia o homem Saramago e a obra Saramago. E no cruzamento da rua Pilar del Rio com a rua José Saramago encontramos uma de suas dedicatórias marcadas à eternidade.
      O filme termina com nosso desejo de que sequer tivesse começado, pois assim não haveria a dor do terminar. O filme termina com a esperança de outro livro, de outra caminhada árdua, de outra série de lutas, mas um sendo o Pilar do outro, como sempre. Hoje, após a morte do mestre Saramago, não há como brilhar os olhos e esperar que realmente exista realidade na frase dita pela boca de José e que abre e entrecorta o documentário: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio." Espero que, no fim, encontrem-se.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Cine Holliúdy e o que realmente importa

Acabo de ver pela segunda vez Cine Holliúdy, filme cearense que, na terra natal, desbancou grandes blockbusters como o novo filme do Wolverine e coisa e tal.






Meu primeiro encontro com a obra de Halder Gomes foi em Salvador, quando o filme ainda só estava em cartaz nas salas do Nordeste. Já trazia consigo o crédito de ter sido uma das maiores audiência no Ceará, o que atraiu a atenção minha e da Julia, minha namorada. Seguindo meus rituais, não li resenha ou descrição (mesmo porque não tinha nenhuma além do sucesso no estado primo) e fui ver cru o filme, sem saber bem o que esperar. O filme, falado no exótico dialeto do cearensês e legendado em português para a compreensão geral, conta a saga de Francisgleydisson, um apaixonado pela sétima arte, e sua família na tentativa de montar um cinema. Passado nos anos 70, Francisgleydisson vê se aproximar a invasão da televisão, que coloca em jogo a relevância sócio-cultural do cinema. Mais do que uma luta para manter a magia do cinema viva - porque é disso que se trata no filme, da magia, do encantamento, do fascínio que estão contidos na telona, na produção; aquele outro mundo, ideal (ou não), mágico, onírico, que nos hipnotiza e nos permite sonhar e continuar sonhando -, o filme retrata o embate entre público e particular, comunidade e indivíduo, a interação e o isolamento, o cinema e a televisão.
Halder Gomes, diretor, roteirista e cearense
E o que poderia ser uma emocionante homenagem ao poder, o valor e o amor pelo cinema, transforma-se, nas mãos e coração de Halder Gomes, com todo - e muito, muito bem vindo - seu regionalismo cearense (toda a sua cearensidade), em uma grande homenagem à história contada, à narrativa que é tão característica da cultura nordestina, e, talvez mais importante, traz a magia como construção coletiva, dando absoluta voz ao espectador, que se recusa a apenas "espectar", mas insiste em participar, construindo junto, transformando junto, sonhando junto.

Quando entrei na sala, que deveria ter no máximo 30 pessoas, admito, duvidei do filme. Mas não poderia ter assistido melhor filme em melhor lugar. Se foi coincidência ou não, não importa, mas todos aqueles 30 baianos riam com gosto ao ouvir uma gíria esquisita do Ceará ou uma piada, por mais boba que fosse, puxavam o ar quando surpresos, comentavam, participavam, nos fazendo (nós, cariocas inveterados, que achamos tanto muito de nós mesmos quanto da arte de fazer filmes) rir junto, comentar junto, nos surpreender junto. Enfim, interagíamos com a tela, aquela que já viva e sorrindo para nós, como se dissesse que éramos poucos mas éramos privilegiados por estarmos ali, vivendo o que realmente significa uma sala de cinema. E éramos vivendo juntos um sonho no meio do maior shopping center de Salvador.

Não vou me prolongar muito dessa vez... prefiro que veja o filme e, se já viu, reveja e de preferência no cinema. É um filme cuja simplicidade cativa e toca e que, os olhos fascinados e o coração envolvido, arrancaram de mim menos palavras do que emoção.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Demian ou Não postamos só babação de ovo

Antes de mais nada

Por favor, leiam o livro antes de ler isso ou não levem em conta nada do que foi escrito. Obrigado.

Mais nada

A impressão básica que tive de Demian, a princípio, foi de que era um livro extremamente arrogante. Agora, isso deve parecer de grande arrogância de minha parte, isto é, chamar um ganhador do Nobel que foi Hesse de arrogante em um de seus livros mais famosos. De fato, o chamo assim talvez por não ter tido contato com o resto de sua obra, talvez por não ter compreendido a essência do que há no livro... não sei... Isso é a vossa majestade, o leitor, quem irá julgar. Mas tenho lá meus motivos, certo? Não são (apenas) disparates. Vamos então entrar no mundo de Demian, tal como eu o absorvi.


Apresentação

O protagonista em primeira pessoa é Emil Sinclair, embora eu apenas saiba de seu primeiro nome pela orelha, já que não me lembro dele ter alguma vez sido mencionado na edição que li. Enfim, isso não é importante. Sinclair, então, começa o livro em um prólogo, explicando que vai contar a história de sua vida, dando uma breve explanação de como é o homem. Já daí o ambicioso (e, porque não, pretensioso) projeto de Hesse me bateu no estômago. Já ouvi e li muitas versões do que é o homem, o que ele aspira, o que ele representa. Versões que se contradizem e tem pouca base além da experiência pessoal do autor. A de Hesse, ou de Sinclair, aparentemente não sai muito disso. Mistura sua visão de mundo com um misticismo confuso, determinista e, porque não, elitista, para dar luz a uma estranha diferenciação entre homens e seu objetivo na vida. Agora, a coisa interessante disso tudo é que o personagem Emil Sinclair é retratado como alguém fechado, evita ou tem dificuldade em interagir e tudo o mais. Ainda assim, ele apresenta visão de como são todos os homens - sem os conhecê-los. É enervante. Todas as suas características de exclusão social são vistas, no fim das contas, como glorificantes. Quem já viveu a solidão sabe bem que de enaltecedor não há nada. Sabe também o estranhamente comum que é o desprezo pelo resto do mundo. Talvez cheguemos a conclusão que, no final, Sinclair era apenas um garoto tentando achar seu nicho... Bom, não vamos nos apressar... chegaremos ao final.

Personagens e Ensaio

A forma como o autor conduz o livro também é algo que me incomodou. Sendo Sinclair o narrador personagem que conduz a história, talvez até seja justificável, mas no entanto, temos Dom Casmurro, que eu inevitavelmente uso para comparação, vindo de Machado, escritor brasileiro sem Nobel (e como poderia ser diferente?) que vive pouco antes e durante parte do período de Hesse e de cuja obra ainda infelizmente desconheço tanto, mas que já causou o impacto com os parcos livro e poemas que li. Que absurda comparação é essa? Ao narrar a própria vida, o que Sinclair faz é utilizar-se de acontecimentos vividos para, e talvez seja essa a questão do livro, argumentar um ponto de vista. O grande problema é que ao fazê-lo, boa parte, senão todos os personagens do livro, parecem extremamente artificiais, despidos de emoção e personalidade. Principalmente o que dá nome ao livro, Max Demian. Fiquei surpreso de no início do livro, enquanto Sinclair ainda frequentava a escola com Demian, isso ser anunciado em voz alta pelo narrador, mas nunca explicado. Demian era frio e sem emoções, um morto vivo que andava por aí filosofando com nove anos de idade. Uma criança que não se importa de matar outra se esta a está aporrinhando porque, "são decisões que um homem precisa fazer" ou algo assim. É coisa de doido mesmo. O único personagem que talvez saia desse balaio é o próprio Sinclair, este muito mais desenvolvido e interessante, apesar de algumas sequências de ações duvidosas e praticamente inteiramente ilustrativas. Talvez por ser o narrador. E é aí que eu faço uma provavelmente esdrúxula comparação com Bentinho. Bentinho também é narrador e a nós talvez os personagens de Dom Casmurro se mostrem distorcidos pela visão do personagem. Mas são todos, em seu jeito rebuscado e novecentista de ser, extremamente complexos emocionalmente, interessantes, diferentes, etc... Senti carinho por José Dias ou temor e respeito pela mãe de Bentinho, mas com Demian, minha sensação é que os personagens estão lá para ajudar a construir uma argumentação. Longos e inverossímeis diálogos em que Sinclair e, logo, o leitor, são quase que didaticamente ensinados os pensamentos do autor me fazem misturar Sinclair e Hesse e, no final, não ver muita coisa de história no livro. Interessa-me o que tem para falar, mas o fim que levou Sinclair, Demian, ou os outros personagens, pouco importa. E assim pareceu ao autor também, pelo visto, quando depois de falar tudo o que tinha para falar, abortou o livro em uma inércia paumolescente para quem esperava... alguma coisa. A coisa é que Demian mais parece um ensaio que utiliza o romance como formato do que um romance propriamente dito.

Maniqueísmo e Abraxas

Uma das coisas que é bastante frisada no livro é a síntese da dicotomia bem e mal (e suas intermináveis variantes) dentro de uma mesma coisa. Lá pro meio do livro o autor dá nome a essa coisa: Abraxas. É um dos argumentos principais do livro que existem dois mundos, o iluminado, seguro, puro, etc... que seria representado, na infância, pela casa da gente, nossos pais, etc... E aí tem o outro mundo, um mundo perigoso, sujo, o mundo das ruas, dos bordéis, das tavernas e essa coisa toda... um mundo que fascina Sinclair desde criança. Os dois mundos acabam fundindo-se e encontrando sua síntese em Abraxas, que eu não tendo pesquisado sobre, não sei se faz parte da mitologia do livro ou é coisa real, mas se trata justamente de um "deus", se é que podemos chamar assim, que é bom e mau, e que na verdade pode ser qualquer coisa e é tudo. Isso é interessante para se quebrar com o maniqueísmo católico com o qual Sinclair convive na infância, muito apesar de adicionar pouca complexidade além dele ao fenômeno da vida. Veja, Abraxas não nega o maniqueísmo, ele, pelo contrário, o aceita, o abraça e faz dele parte de si. O maniqueísmo se torna duas faces de uma mesma coisa, mas ainda é maniqueísmo. Isso dá um caráter de dualidade a tudo, e, no caso do livro, aos personagens também. Sinclair em dado momento de sua vida começa a frequentar tavernas e beber muito. Logo depois vira um santo casto iluminado por uma figura de musa platônica. Então descobre Abraxas e passa a dedicar sua vida a isso, à coexistência do bem e do mal, sempre usando como parâmetro os valores cristãos, talvez, não sei.
Bem e mal são referenciais, como bem sabemos. Mesma coisa é o certo e o errado. Se abortar é certo para uns, é também errado para outros. Aborto, então, ao invés de ser uma coisa que coexiste entre o certo e o errado, como eu acredito que seja a ideia no livro, é, na minha opinião, algo que existe e ponto e daí as pessoas tiram suas conclusões. Imprimir a impressão pessoal de alguém como característica da coisa me é estranho e tais noções sempre serão pessoais. Não obstante, gosto da forma como Hesse lida com a dicotomia, talvez mais forte na Europa. Voltando à Machado, também em Dom Casmurro, os personagens evitam tal taxação. Por mais que Bentinho, enquanto narrador,  tente imprimir em Capitu a característica de má ou coisa que o vale, no fim das contas é o leitor quem vai definir o que vale o que na história e se não é, afinal, Bentinho quem degringolou. Lembrando que Machado não é Nobel. Uma das maiores injustiças da história da literatura. Foda-se. Voltemos.

Misticismo

Outra característica forte do livro é sua pegada pro misticismo. Este, admito, tenho grande preconceito. No livro, no entanto, não é quando Demian diz que se você está pensando numa coisa com afinco, ninguém te incomodará nem quando ele afirma que se você quer algo, basta pensar naquilo e terá (da onde eu descobri o início d'O Segredo, aliás), nem nada relacionado à estranha seita que me incomoda. Não, o que me incomoda é a forma absolutamente arrogante com que lidam com esse misticismo que eu poderia até aceitar como parte inocente da mitologia do livro, mas não o faço de birra. É essa coisa que o autor insistem em Marca de Caim e o diabo a quatro. Aparentemente quem nasce com a Marca de Caim é superior ou é destinado a ser superior aos outros. Coisa que eu a princípio pensei ser figurativa, ao longo do livro se mostrou mais e mais literal. Aliás, comigo o livro todo foi assim. Por ver em Demian personagem não existente, o deleguei a ser parte do próprio Sinclair, assim como a mãe de Demian, personagem, no fim, chave. Mas o livro me provou errado repetidas vezes colocando provas inequívocas da existência física dos personagens, me deixando na merda e sem alternativa a não ser desgostar cada vez mais do livro. Desculpa, é isso. Em dado momento, Sinclair conhece um organicista que deve ser o segundo personagem mais interessante do livro, e aliás nem é tão interessante assim. Enfim, em uma das didáticas, o autor nos expõe que não é possível criar nada. Ora! Oquei... Mais tarde me vem com a ideia de que a Natureza tem um desígnio para nós e que nossa função enquanto homens é segui-lo. Não só isso como alguns outros aspectos do livro são como uma saga agostiniana. Olha: tanto Sinclair como Santo Agostinho vivem sua vida como provação e evolução em direção à iluminaçao divina (ou natural, se é que podemos chamá-la disso). Se para Santo Agostinho era Deus que fazia os caminhos, para Sinclair e companhia era a Natureza. Nada deviam fazer além de seguir os desígnios para eles feitos. E que isso era coisa de homem justo e bom e sei lá o quê. Para uma seita que diz explicitamente: "Nós, os marcados, não tínhamos de nos preocupar com a estrutura do futuro. Todos os credos, toda doutrina salvadora nos parecia inútil desde o princípio." me parece quase incoerente ter uma crença tão rígida e estranha, quase impotente, na sua travessão de liberdade. "Para nós só havia um dever e um destino: chegarmos a ser perfeitamente nós mesmos, conformarmo-nos inteiramente à semente da natureza em nós ativa e vivermos tao entregues à nossa vontade que o futuro incerto nos encontraria prontos a tudo o que pudesse trazer consigo." É claro que é lindo isso.

Sinclair

No entanto, a impotência de Sinclair entra em direto contraste com sua própria descrição do que são os "marcados". Em seu desprezo pelo resto do mundo, em seu enclausuramento erudito, Sinclair pouco conhece das pessoas e pouco conhece da vida. Seu (arrogante) posicionamento como sábio, como marcado, o impediu de experimentar aquilo que nutre poesias e paixões, que são os corações dos outros. Sua grande sina é não se enxergar nos outros, mas apenas em um seleto grupo que, entre diálogos inverossímeis, o deixam como espectador de sua própria vida. A história de Sinclair, se a encararmos como história, é uma de ilusões e passividade, de solidão e busca por um lugar seguro, de insegurança constante e impotência. No fim das contas, não lhe adianta muito ser marcado, não faz nada daquilo que anuncia. Não vive a vida com o afinco e paixão, não tem coragem sequer de fugir da guerra mais sanguinária de seu tempo (talvez por ver naquilo o sinal dos novos tempos, e nisso, pelo menos, ele tinha razão, a primeira guerra mundial foi um divisor de águas) ou ficar com a mulher que ama, entrega-se inerte aos eventos sucessivos, declarando pouco poder de escolha. Seus sonhos de grandeza são respondidos, ao final do livro, com ferimentos de guerra. Não representa nada para o mundo, marcado ou não, e seu amor pela individualidade é soterrado pelo mar de desgosto que foi sua vida. No prólogo, Sinclair afirma estar contando a história real de um homem real: ele. No entanto, talvez seja fato que, de tanto se procurar, Emil Sinclair perde-se em si mesmo.

Retratação

Dito tudo isso, sinto que devo alguma coisa ao autor e ao livro que, de forma alguma é um livro ruim. Vejo em Demian um livro que questiona o pensamento comum a todos, que segue os passos de um jovem durante seu caminho pelo conhecimento de si, pela formação da personalidade. As extrapolações que por ventura Hesse possa ter cometido (ou não, isso vai depender, como sempre, do leitor, ser magnífico e que dá o significado; sou um leitor ingrato) fazem parte de um estilo, gostemos ou não dele e reconheço a talvez estúpida comparação entre Demian e Dom Casmurro, visto que cada livro tem sua estética, sua função. Talvez eu tenha lido Demian tarde demais, quando o espírito antes fresco já encontra-se frio e ressecado demais para receber o tipo de história que Hesse tenta me contar. Quem sabe, talvez eu não tenha entendido nada, afinal... O que sei é que muita gente cuja voz eu respeito tem grande apreço por este livro e não é pela minha infame opinião que ele deve perder seu valor, nem mesmo para mim.




Extra! Extra!

*Destruição Criadora e os Dualismos

“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas.” 

Terminei a resenha e esqueci de colocar este trecho importantíssimo para o livro, o que é absurdo, já que a ave está presente na capa e representa a linha de raciocínio que conduz a formação do jovem Sinclair: do questionamento dos valores dados à liberdade para poder voar para si mesmo (ou para Abraxas). A destruição, para Hermann Hesse, é necessária para a criação do novo ou para a liberdade. Talvez seja por aí que se anunciaria a nova era que profetiza Demian, através da destruição do mundo com a grande guerra.
É claro que o mundo não deveria ser a Europa (como eu sou chato!), mas a gente releva esse tipo de coisa. No meu livro, no entanto, isso demonstra a incompatibilidade de coexistência entre velho e novo... mais dicotomia e eu acho dicotomia um porre.

Aproveitando o espaço, queria fazer um adendo sobre a questão de gênero e sexualidade. Isso é, caso aceitemos minha tese furada de que todos os personagens são Sinclair, a dicotomia homem-mulher e a homo-heterossexual (como vi num comentário, fuçando a internet - e não se preocupem, não achei ninguem falando mal do livro, só o idiota aqui) são talvez as únicas tratadas com certa ausência de contraste. Elas se misturam, sendo que tanto a tríade principal de personagens: Sinclair, Demian e Eva quanto provavelmente Abraxas, são andróginos (o que é fantástico!). Apesar disso, Sinclair não demonstra desejos sexuais por Demian, não explicitamente pelo menos, mas o faz com Eva. O que é engraçado, visto que durante quase todo o livro, a obsessão de Sinclair foi o rapaz pouco mais velho que ele e que dá nome ao livro. Bom... a Demian fica delegada a posição de "guru" ou "guia espiritual", separado do amor carnal. Mas Hesse não me engana, Sinclair joga dos dois lados.