
Calhou ter o nome assim, Pilar, coisa que única das que não controlaria em vida e que a seguiria pro resto de sua existência, coisa boba um nome. Mas assim fez-se Pilar e o poeta-escritor levou ao pé da letra. Em sua pluralidade mental, em seus caminhos, descaminhos e bagunças organizadas, basificou sua arquitetura torturada em Pilar. É como dizem os livros antigos, aquela história da casa que não para em pé quando feita sobre areia. Pilar é ferro, puro, bruto e brilhante. E sim, literalmente, é o sustento de José. Ouso dizer que sem Pilar, Saramago não existiria ou, ao menos, não resistiria. Num mundo criativo e efervescente de Saramago, num mundo de plurideias, subtramas e intertextos, Pilar é a conexão do gênio com a realidade. O intermeio, o canal entrelugares, no entremeio de existências, telefone sem fio de distantes constelações. Pilar seria os pés no chão, sim, mais uma vez: a base. Daí a importância do nome "José e Pilar", pra lembrar que o um não é um sem o outro, um "um" plural. E percebemos isso na medida em que essa maravilhosa obra de arte avança: um ser é inerente ao outro, extremamente dependente, numa sintonia assustadora de acidez, humor e engajamento. Comecemos, então, pelo nome e depois dane-se a ordem. Do nome posso dizer, além do que já disse, não o acho bom o bastante. É claro que ele passa a existência de Pilar ao lado de José, mas deveria ir além, se fosse possível ir além. Se fosse possível que as duas palavras coexistissem, aí sim seria perfeito, não uma do lado da outra, dando a entender que a primeira seja superior, jamais. O nome deveria ser um híbrido, como eles os são, um ser uno, semi-divino.
Meus sentimentos com esse documentários resumem-se, espelhados nos infinitos sentidos dessa palavra: amor. Que objeto mais multifacetado é o amor, e é por meio desse espelho quebrado que conhecemos o íntimo de Saramago. O amor une os troncos antigos de seus dedos aos dedos de sua mulher. O amor o faz subir os montes ao lado de Pilar ouvindo suas histórias e rindo. O amor sai da ponta de suas unhas em seu computador a cada ponto final, a cada virgula. O amor o faz brigar, o cansa, o pesa. Há carinho em todos os toques, em todo estalar de língua, em todo pessimismo antigo desse ser superior. E somos atingidos em cheio por esse apaixonante documentário, e somos postos à prova face a esses dois gigantes que aprenderam a ser um só.
Munido de imagens poderosas, edições fantásticas e roteiro poético, "José e Pilar" nos faz triste, pois cada hora passada com o prazer que o documentário proporciona é uma hora a menos do mesmo prazer e aí ficamos presos nesse paradoxos: porque seres como Saramagos deveriam ser (e sim, são) eternos. Depois que o assisti pela primeira vez senti-me perdido. Tanta coisa pra ruminar, tanto som e fúria, tanto sangue e tutano, tantas frases tão corretas e tão facilmente proferidas pelo frágil gigante português. Terminou-se como sair bailando de um sonho, os olhos recusando-se a abrir já abertos. De tão impossivelmente perfeita a obra e eu, de tão maravilhado, me vi perguntando a mim mesmo: É um documentário? Não é um romance? Veja que pergunta estúpida, leitor, a qual me veio a resposta direta, como a língua da chibata quente nas costas nuas, na voz do próprio José: mas é claro que é um romance. Mas é claro. Cheia de poética, metáforas, intrigas fantásticas, "José e Pilar" é o romance perfeito: uma realidade recheada de surrealismo, de neologismos, de paronomásias e outro termos já muito recauchutados e empregados a torto e a direito. É o romance perfeito, além da perfeição estética, por ser a mais pura amostra da realidade, do amor (aquele ser muito odiado e tantas vezes tomado como invenção) mais inflexível do mundo e, ao mesmo tempo, mais delicado.
O filme termina com nosso desejo de que sequer tivesse começado, pois assim não haveria a dor do terminar. O filme termina com a esperança de outro livro, de outra caminhada árdua, de outra série de lutas, mas um sendo o Pilar do outro, como sempre. Hoje, após a morte do mestre Saramago, não há como brilhar os olhos e esperar que realmente exista realidade na frase dita pela boca de José e que abre e entrecorta o documentário: "Pilar, encontramo-nos noutro sítio." Espero que, no fim, encontrem-se.
Este filme é maravilhoso, vi por indicação sua, como bem sabe, e me apaixonei. O que me foi mais marcante no decorrer do filme foi a fragilidade física do Saramago, a força de suas palavras e o vínculo com Pilar, que a principio eu até pensei que talvez fosse prejudicial a ele, mas logo vi q não poderia estar mais errado. Como você disse, Pilar era seu combustível, sua base estrutural...
ResponderExcluirO amor que os dois tinham um pelo outro era incrivelmente intenso e muito, muito bonito. O que me aconteceu foi que o aperto no meu coração cresceu a medida que foi se acabando o filme, não pelo fim do filme em si, mas por saber que Saramago está morto e que esse filme é a última e única possibilidade de um tipo de vínculo com esse ser maravilhoso (com exceção de suas obras, é claro), e eu queria me agarrar a ele, a essa beleza poética que anda entre nós, de qualquer jeito.
Aliás, a fome que me deu das obras de Saramago, que nunca li, foi incrível depois do filme... Senti uma vontade imensa de conhecer aquela alma...
Para os que chegaram até aqui, deixo um prêmio, um pedacinho do filme
http://www.youtube.com/watch?v=7JxwTE7l6sw