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quarta-feira, 5 de março de 2014

Orson Welles e a verdade

Quando Orson Welles explica, logo no início de F for Fake, que é um filme sobre mentira, talvez ele estivesse subestimando a potência da película ou, talvez, o mais provável, fosse apenas para não confundir o espectador, poupá-lo por um momento ao menos, para mantê-lo no cinema ou de frente à televisão por tempo suficiente para dar-lhe os sutis tapas de luva de pelica e, então, os socos no estômago. Não, o documentário-narrativa de Orson Welles não é sobre mentira, é sobre algo infinitamente mais complexo que isso; é sobre a verdade - e tudo o que ela traz consigo.



"Quase toda história é um tipo de mentira"

Comecemos pelas bases. Nosso entendimento do que é mundo, e, talvez mais importante, do que não o é, deriva da nossa noção de realidade. A realidade é constituída, assim, pelas coisas que são (as verdades) e as coisas que não são (as mentiras). Uma mentira, é claro, não poderia nunca ser parte constituinte da realidade pois ela não passa de um disparate, uma fábula, uma coisa qualquer que não é e nem nunca foi; uma criação. Será mesmo? O filme de Orson Welles parece insinuar coisa diferente. De fato, o filme não só nos diz, como nos prova que a realidade pouco ou nada tem a ver com a "verdade" - essa coisa que, ora, sejamos sinceros, quem realmente conhece? Não, leitor, a realidade é realmente uma fina - muito fina - manta de interpretações subjetivas. Estas, por sinal, jamais serão enquadradas em conceitos maniqueístas e simplórios como "verdade" ou "mentira".
Decompondo o pensamento: realidade é manta porquê é formada coletivamente, por fios e fios - como estes fios são direcionados, que padrões eles formarão, tudo isso veremos depois - que se entrelaçam dando uma sensação de certa uniformidade no entender das coisas, de um mesmo padrão de referência - para aqueles que formam a manta, ao menos. E é fina por sua fragilidade absoluta, por seu enlace ser de tal forma frouxo que o pequeno puxar de cordas pode resultar em total desmoronamento da maioria se não de todos os padrões formados. Não acreditamos em verdades, leitor, nem as seguimos por que elas são incontestáveis. Nada existe de incontestável nesse mundo. Acreditamos em qualquer coisa que nos digam e que nos faça sentido e que nos dê a base de sanidade suficiente para vivermos em coletividade. A realidade é, afinal, um bem (que pode tanto ser mal) comum à humanidade... Talvez menos... Mas certamente comum à comunidades e nacionalidades, e por aí viajamos. Estou tentando dizer que a realidade é algo que se constrói coletivamente com certezas coletivas e, para isso, cada manta, cada período sócio-histórico haverá de ter seus dispositivos de coesão, a fim de manter os fios frouxos o mais presos possíveis - e aí o leitor dê seu entendimento de "preso" como quiser.
Desde que viramos modernos, desde que olhamos o mundo positivamente (sim, estamos falando de Comte), desde que passamos a viver no cientificismo absoluto, donde todas as "verdades" (olha ela aí de novo) têm de ter o aval científico... Ou seja, mais ou menos desde o século XVIII/XIX, um dos mais importantes mecanismos de validação da realidade (das nossas certezas coletivas) é o "expert", o especialista. Se teria começado nos campos científicos propriamente ditos, desde a Física às Ciências Sociais, não tardaria a invadir outros campos de conhecimento. Afinal, o século XIX é o período em que Deus morre e Rimbaud foge da Europa. Tantos experts avaliando poesias, romances e quadros. Os experts que condenariam os pintores impressionistas e, bem mais tarde, no Brasil, os jovens da Semana de 22. Na era da Ciência, o encantamento está proibido e as "verdades" são mecânicas.
Mas chega disto... deixemos claro que os especialistas são um mecanismo de legitimação de discurso, são aqueles que dão a palavra final. São eles "instrumentos da verdade" e, tal como uma afirmação científica precisa de base e provas, os especialistas as provêm, tornando seu veredito tão imparcial e certeiro quanto a lei da gravidade (e, quem sabe, talvez seja). Como somos tolos... como somos ingênuos... No início do filme, Orson Welles nos diz "Quase toda história é um tipo de mentira". Deixe-me modificar a frase ligeiramente, sem retirar-lhe a essência: Quase toda a realidade é, de certa forma, imaginada.

A sociedade de consumo; O mercado; A demanda; A "Arte"

É claro que os experts não são as únicas variáveis que formam as certezas e verdades do nosso tempo. Desde o advento do capitalismo, de mãos dadas, aliás, com o pensamento racional (de razão instrumental, de lógica de lucratividade) que cresce com o protestantismo burguês e, então, dá origem a um cientificismo patricida (visto que mata Deus), cresce a lógica de mercado. A razão filosófica é, em certa medida, substituída por uma razão instrumental, que visa, antes de mais nada, maximizar os lucros e minimizar as despesas. A propriedade privada cresce cada vez mais em relevância e é claro que isto influenciaria pesadamente o mundo artístico. De repente a arte passa de uma encomenda ou uma obra previamente combinada (um retrato ou uma representação bíblica, por exemplo) para ser um produto a se expôr em galerias, negociado e barganhado. De repente era preciso agradar a esse novo ser abstrato mas que soa tão real (tão "verdadeiro") a tantos: o mercado. Refém de vontades e ideais estéticos alheios, o artista fazia o que podia para sobreviver. Se houve aqueles que conseguiram, mesmo contra críticos e especialistas, se consagrar, houve aqueles que cederam às vontades do tal mercado. É claro, precisamos todos nos alimentar. Mas o que esse mercado queria? Quais eram seus valores estéticos? Isto é fácil de responder, leitor. "Há" algo que se chama Arte, com "A" maiúsculo. Sobre isso, o historiador da arte, E. H. Gombrich nos diz

"Uma coisa que realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de Arte. (...) Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo de um bicho-papão e de um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer não é 'Arte'".

"Arte" é, na verdade e principalmente, os valores estéticos hegemônicos. A Arte é produto e ferramenta do discurso da verdade. Ao mesmo tempo em que decorre dele, isto é, decorre do que dizem os especialistas, é também ela própria discurso (pois é comunicativa e exemplificadora). Ora, a ironia ignorante a que se submetem todos os defensores da Arte verdadeira é o fato de que a mesma foi tantas vezes coisas diferentes quanto foi aquilo a que ela mesma se opunha. Exemplo fácil disso foi o movimento impressionista, que se não foi considerado Arte em sua época, hoje é coisa finíssima da mais rara qualidade. Ah, raridade! Chegaremos lá! Imagine você, leitor, sendo artista e tendo que lutar contra o fetichismo "Artístico", contra o mercado, contra o dinheiro com o qual se alimenta e se obtém teto.
E, se os alvos do fetichismo mudaram, ele continua vivo e, talvez mais forte ainda, na primeira metade do século XX. Chegamos onde começam as histórias de nosso filme (sim, ficamos tempo demais sem tocar no filme! Iremos já para ele).
Se a arte há não muito tempo histórico passa a ter valor de propriedade privada, imagine como funciona com a Arte, sendo fetiche, na sociedade de consumo já consolidada do século XX, onde a máxima da oferta/demanda reina... Ora, se a oferta de Arte é parca (considerando a óbvia raridade de quadros originais), e se as demandas partem dos setores mais ricos da sociedade, não é de se admirar que o preço de tantos quadros atinjam seis números. Mas o que leva alguém a pagar tanto por uma tela? Se antes ter arte e, mais ainda, Arte, já era sinal de poder aquisitivo, em nossa sociedade de consumo, a Arte enquanto fetiche altamente procurado e pouco ofertado se torna um poderoso objeto de poder. Ter um Manet ou um Rafael ou um Van Gogh original é símbolo de imenso poder, é como um troféu a ser pendurado na sala de estar.
Com a Arte em tão alta estima, quem estaria interessado nos novos artistas que estão surgindo, podendo ter um Modigliani? E que outra escolha teria o artista talentoso passando fome, se suas telas não vendem, além de fazer... Arte?

Falsários; Os fios soltos; Enfim, o filme

Welles nos diz que seu filme trata de mentira... talvez, mais apropriadamente, de mentirosos, falsários, "fakers", em termo estrito e abrangente... É claro, isso não exclui ninguém (exceto, talvez, seu co-produtor, Richard Drewis) da categoria, mas centra-se na história de alguns personagens seletos. E nos responde sem termos de perguntar: mas, afinal, o que forma um falsário?
Tanto Elmyr de Hory, quanto Clifford Irving e o próprio Orson Welles tiveram trajetórias de certa forma parecidas. Estes são três dos personagens explorados na película. Tanto Elmyr quanto Welles começaram sua carreira artística como pintores. Fracassados. Famintos. De repente alguém vê um Matisse ou um Modigliani pintado por Elmyr e pede para comprar. Ora, que mal teria? Elmyr precisa comer! Vende. E, então, vende mais. E mais. E percebe que, se assim é o único jeito de sobreviver fazendo arte, que assim o faria. Tinha talento, sabia disso, poderia passear entre Picassos, Monets e o que mais viesse. Tinha talento e nunca poderiam dizer que o que fazia não era arte! Não é verdade? Não, é claro que não! Se descobrissem que sua Arte não é Arte, mas uma falsificação, perderia todo o seu valor. Mas chegaremos a isso. Falemos de Welles. Ele que, diferente de Elmyr, descambou para a mentira dos palcos. Disse ser um famoso artista americano e, ironicamente, se tornou um. Quase uma profecia que se auto-cumpre. Com Clifford Irving não foi tão diferente. Escritor de ficção mal-sucedido, viu na necessidade a urgência de fazer outra coisa. E passou a escrever biografias, até seu magnum opus: a biografia do magnata Howard Hughes que, para sua (in)felicidade, foi descoberta como falsa. Veja, leitor, estamos falando de três artistas de campos distintos (mas nem tanto) da arte que, em meio à necessidade, reconheceram o que procurava o mercado, e fizeram, cada um ao seu modo, Arte. Mas ainda mergulharemos nisso.

O fato é, leitor, que nossos falsários, cada qual de um jeito, abalaram as bases frágeis da realidade. Talvez o que mais exemplifique isso seja o caso de Orson Welles.
Em seu tempo na rádio americana CBS, Welles fez uma representação da Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, causando uma histeria coletiva jamais vista. Talvez sem saber, Welles utilizou as ferramentas e dispositivos de legitimação da verdade: o rádio, meio consagrado de comunicação em massa e, quiçá, visto como imparcial; a palavra de falsos "experts", que afirmavam, por exemplo, que os invasores se tratavam de marcianos. Construiu assim, verdades que contrariavam as verdades estabelecidas. Construiu, palavra por palavra, imagem por imagem, fio por fio, uma nova realidade, e isso era aterrador. A histeria foi generalizada. Aparentemente, uma mulher afirmou ter sido atacada por marcianos: "Foi horrível", disse. E quem poderia duvidar? Por alguns momentos, marcianos de fato atacavam a Terra.


Orson Welles puxou o fio... e aquela fina manta se desfez completamente. Ninguém pensaria que seria tão fácil.

Ah, a autoridade. É infalível, pensamos, a palavra daqueles que detém a verdade. Elmyr de Hory e seu biógrafo Clifford Irving mostraram de forma concreta o quanto isso é, com o perdão da palavra, mentira. Das grandes frases ditas no filme, uma se encaixa muito bem no nosso próximo segmento. Coloquemos como subtítulo, sim?

"A questão não é se é falso, mas se é uma falsificação boa ou ruim"

Lembrando a situação da Arte, como fetiche, troféu e objeto de poder (serão sinônimos?) em nossa sociedade, existem pelo menos dois elementos que dão a autenticidade para que a arte seja Arte, e estes são os museus, isto é, as "instituições da verdade", onde podemos conferir "o que presta" e está incluído na estética hegemônica. E os já mencionados especialistas, que servirão de mediadores entre a arte e a Arte pendurada em museus e coleções particulares. Em termos de mercado e valor, e buscando referência no filme, existe uma equação simples que podemos usar.

"O valor da obra depende de opinião. A opinião vem dos experts."

Parafraseando Elmyr de Hory, eles são aqueles que dizem se uma coisa é boa ou ruim. A confiança na palavra dos especialistas é tanto que um simples acenar com a cabeça pode fazer um quadro valer milhões - ou reduzi-lo a nada. São eles extremamente importantes no discurso fetichista Artístico, sua palavra tem quase tanto poder quanto o objeto em si, senão mais, já que ela pode colocar o próprio objeto em dúvida. Essa confiança na infalibilidade do expert será abalada, senão destruída com Elmyr e, depois, com Irving.
Ora, foram as falsificações de quadros por Elmyr submetidas a avaliação de especialistas e autenticadas como originais, assim como as assinaturas presentes nos documentos da biografia confessamente falsa feita por Irving.
Mas, então, Welles nos incita, se aqueles que se dizem portadores da verdade, aqueles que têm o poder de declarar uma coisa como autêntica ou não, aqueles que dizem o que é Arte... se eles erram... Se eles mesmos não dão conta de fazer um julgamento definitivo... Então quem é o farsante? Quem pinta o quadro ou quem mente ao dizer que diz a verdade? E, novamente, quem é o especialista?
Elmyr e Clifford Irving puxam o fio de tal maneira que só se percebe que a manta desabara quando já é tarde demais. Ambos entenderam o intricado enlaçamento de fios e o arremataram bem na estrutura, bem onde os discursos se verificam e se tornam verdade. Foi um golpe devastador na prepotência dos experts e dos conhecedores e em seu sistema fantasmático. E de repente, perguntas surgem para o espectador confuso: "mas então... se não possui valor intrínseco, se pode ser forjada e confundida, se pode ser imitada e reproduzida, o que é Arte? Será que ela sequer existe?"

Estigma

É claro que no mundo real as coisas não funcionam assim. É mais fácil reconhecer nossos falsários como falsários do que como artistas e abandonar todo um sistema de valores sobre o qual uma certa realidade é erguida. Carregam, então, o estigma de falsificadores, de golpistas, de mentirosos. A ironia da situação é, como nos elucida Welles, o fato de Irving ter escrito a biografia de Elmyr, sendo, então e talvez, falsa a... falsidade (?) do pintor. Certamente, ao nos deixarmos levar por estigmas e mentiras e verdades, acabamos em um cheque-mate. Vamos nos ater aos fatos tal como nos foram contados pelo filme. Se Irving lucrou com suas biografias, falsas ou não (é questionado se Howard Hughes, o da biografia forjada, realmente existiu ou se, ao menos, estava vivo na época em que desmente sua biografia), é certo que o lucro de Elmyr mal se compara ao lucro que obtiveram os negociantes de arte em cima de suas falsificações (sequer a casa onde morava era sua propriedade). É certo que suas falsificações não eram cópias dos originais, mas imitações de um estilo, o que por si só já demonstra seu talento, sua capacidade de passear por estilos diferentes. É certo também que seu estilo de vida como falsificador veio em decorrência de uma demanda de mercado e de uma necessidade de sobrevivência; que tentou sem sucesso vender seus próprios trabalhos. Elmyr foi mão-de-obra da indústria da arte, foi renegado e explorado e, após sua morte, suas obras passaram a ter valor enorme, o que apenas demonstra a cretinice e a hipocrisia da mesma indústria, o quão vil e carniceiro é o fetiche da Arte. Eis que o ciclo se forma, falsificadores mais novos passam a falsificar o falecido falsificador.

Novamente, a realidade

Pro final do filme, Orson Welles anuncia: "Pelos últimos 17 minutos, eu estive mentindo freneticamente" (perdoe pela péssima tradução, mas é o que temos). É o soco no estômago do telespectador, depois de tantos outros. Atônito, ele se pergunta: até que ponto foram as mentiras? O quanto do que acabara de ver realmente era "verdade"? O filme de Welles, classificado como documentário, vai contra diversas formas estéticas padrões de um documentário. Ele tem narrativa intensa, personagens expressivos para além das "testemunhas documentais", construções de sequências, usando pesadamente a edição e outros truques e mágicas do cinema e, o que é pior, ele mente! Sua metalinguagem fica ainda mais evidentemente pronunciada com a declaração: "Eu menti!", terrível num documentário.
E então o espectador sorri. É claro que mentiu, e porque não o faria? A realidade é construída através de discursos, de verdades que compramos, que aceitamos como... verdadeiras. Como alguém que evidencia isso poderia sequer tentar apresentar um quadro de verdades isentas e imparciais, como nos tentam fazer os documentários, como fazem os discursos hegemônicos? Estamos diante daquela fina manta e Welles insiste para que puxemos o fio. O filme todo é um discurso, o que não o torna menos real que nada, pelo contrário. Sua honestidade em assumir-se como o que é, é, para mim, louvável.

"Talvez não seja tão importante assim"

Morreram os encantamentos e, com eles, a celebração da arte... E a Arte, enquanto fetiche, acompanha o movimento, apoiando-se nos corpos caídos da beleza e do desprendimento para se levantar, vigorosa, com o auxílio do mercado e dos especialistas. Caem as obras, ficam os nomes, ficam os fetiches.
Morremos, diz Welles... E a arte é nosso legado... é o que deixamos para quando não estivermos... e algumas obras durarão mais, outras, menos, mas tão certo quanto a morte, elas também desaparecerão, originais ou falsificadas. Diante deste cenário, que talvez seja a única verdade com que podemos contar sem dúvidas, talvez... talvez um nome não seja tão importante assim...
Recita:

"Nossas canções serão todas silenciadas
Mas e daí?
Siga cantando"

Completo: Teremos tanto assim que podemos rejeitar nossos artistas (e sua arte) em nome de um fetiche, em nome de um emaranhado de fios frouxamente enlaçados, mesmo que por... especialistas?