-
Um drink para todos, eu pago! – E dizendo isso, bateu com a mão ébria na mesa
de madeira que dançava ao ritmo dos nervosos pontapés do outro.
-
Só temos nós dois aqui, não faça papel de idiota. – Acendeu um cigarro amassado
com as mãos, isolando-o da realidade até o fogo engolir sua ponta e sussurrou –
Como se você fizesse o que eu digo. – tamborilou com os dedos aracnídeos sobre
a mesa surrada na sinfonia do nervosismo que dormitava dentro daquele peito
magro – Nunca vem ninguém aqui, me sinto vulnerável demais.
-
Vulnerável? Se só temos nós e o José no bar, o que de mal poderia acontecer? Quer
dizer, você deveria se sentir vulnerável num lugar cheio, quanto mais seres,
maiores as chances de um deles chegar por trás e desenhar suas iniciais com
estilete no teu peito. Agora, nós dois aqui e você vulnerável? Você tem medo de
mim? Quer dizer, posso ir embora, só que não vou pagar a rodada de drinks que
prometi.
-
Não nos falamos faz anos, não? E você continua idiota.
O silêncio censurou os atos do mais magro que
engoliu, com dor, a fumaça destilada do cigarro. Não era bom começar atacando
assim. Continuou tocando sua música milenar do nervosismo, as unhas pontiagudas
raspando na madeira velha, transformando uma dança exótica numa obra de arte do
entalhe.
-
Vi um filme esses dias que me deixou com um nó na garganta. Me lembra esse
lugar. – Disse a fumaça de seu cigarro. – Um drink no inferno, chamava. – E riu.
Era só uma piada.
-
Poxa, esse filme é fantástico! Quer dizer, você já parou pra pensar no que ele retrata?
O poder genial do Tarantino e do Rodriguez ao mudarem uma história realista
totalmente de foco sem perder a qualidade? No mínimo é de fazer pensar sobre
como a mente humana é híbrida e sobre como a arte pode atingir diversas
temáticas.
O
magrelo sorriu, a boca estirando-se em uma rachadura estranha no meio da zona
fria de seu rosto longínquo. Quer dizer que o babaca agora queria discutir
cinema e arte pra passar o tempo e quebrar o gelo. Riu.
-
Não eleve tanto esse filme, não me diga que você é mais um dos outros.
-
Dos outros o quê?
-
Dos outros lambedores de saco... Esse filme é o mais superestimado dos séculos,
é uma brincadeira infantil com as pessoas que querem assistir um filme sério,
ou ao menos entender o que vai acontecer.
-
Não, não diz uma bobagem dessas...
-
Eu consigo imaginar o Quentin e o Robert, fumados, cheirados e afogados em
bebidas e suores dos milhões de pés que eles devem guardar no porão, rindo como
dois adolescentes que descobrem pra o que serve seus pênis mal formados, com
uma caneta na mão e o roteiro desse filme, exatamente naquela parte, naquela parte
que eles entr...
-
Não posso concordar com nada disso, quer dizer, se os dois estavam cheirados e
fumados e bêbados, estavam durante o filme inteiro. Não há erro, é uma obra de
arte sólida!
-
Sólida? Assistir aquele filme é como ver um bebê tentando pegar um quadrado de
plástico pra enfiar na forma de um circulo, é a maior obscenidade com minha
capacidade mental.
-
Você precisa parar de ser tão neurótico e paranoico. O mundo real não é essa
crosta megalomaníaca sua, às vezes as coisas são feitas porque o são, e você
não tem nada a ver com isso, e você sequer existe no universo de quem o fez.
-
Claro que existo, eu sou o expectador!
-
Você é o doente, você é o homem que anda pelo supermercado com uma maquina de
por rótulos nas coisas e preços e pesos e medidas. Vai, bebe mais um pouco que
talvez te afoga e te torna mais alegre.
-
Não, agora eu quero saber, quero saber o que te faz ver tanta boa coisa num
filme que brinca com seu expectador como se fossemos gatos mimados correndo
atrás da bola de lã inexistente.
-
Mas é isso que um bom filme faz, veja, te move como um marionetista move seu
boneco, te joga numa verdade pra destruí-la completamente, te anarquiza, te atenaza,
te atazana. Um bom filme faz sim de seu expectador um gato mimado e joga, na
distancia que quiser, sua bola de lã, pra que a gente corra como um desesperado
e descubra que não é nada daquilo.
-
Eu gosto de filmes sinceros.
-
Então você gosta de filmes de fantasia, porque não existe sinceridade no mundo,
só mentiras polidas e mentiras bruscas, onde as segundas são as perceptíveis.
-
Não comece a fazer uma leitura social a partir de um filme horrorosamente trash
e pretensioso.
-
Não acredito que exista pretensão no filme.
-
Como não? Com George Clooney
e Harvey Keitel? Como não pode existir pretensão? Ainda
consigo imaginar ao menos o Harvey fazendo aquela cena vergonhosa com um peso
na consciência enorme. Isso é, além de um insulto ao expectador, um insulto ao
grande ator que ele é.
-
Eu duvido muito, estavam todos se divertindo e tenho certeza. Você precisa para
de ver as coisas com esse véu negro e pesado, essa lugubridade nojenta que
sempre sai rastejando da sua boca e só me dá nojo, sempre foi assim! Talvez por
isso não nos falamos nesses anos.
-
Mas me diz, me diz se não é uma falta de respeito com ele? Aquela mulher
dançando, as coisas acontecendo de repente, e o sentido e a coerência sendo
derretidos lentamente sobre seus olhos e...
-
E é exatamente aí onde está a magia, o poder do cinema, da imaginação doentia
das duas pessoas. Eu acredito que não exista conclusão melhor pra esse filme,
tenho toda certeza que nasceu desse jeito e não há o que mudar, porque tinha
que ser assim, e se não fosse não chamaria tanta atenção!
-
E se não fosse talvez fosse o melhor filme escrito pelo Tarantino. A qualidade
dos personagens desenhados, o próprio Tarantino como um dos irmãos Gecko,
roubando toda sua cena com aquele delírio sexual paranoico psicopata e infantil,
tudo isso num olhar tímido, mas que ainda tremeluz como uma vela indecisa sobre
sua existência. Sabe? Havia potêncial e quando o filme terminou daquela maneira
passei dias triste, pois sabia que haviam matado uma obra prima que poderia
continuar explosiva, violenta, sem aquela apelação. Tenho certeza que esse não
é o final certo.

-
Uma obra de arte é aberta pra todas conclusões, cara. E aberta também para toda
modificação que quiser, aí está a beleza. Você pode simplesmente fingir que
nada daquilo aconteceu e que é uma enorme metáfora pra uma briga de bar que deu
errado. Quem sabe nem acontecera tudo aquilo, mas aqueles goles de cachaça
adulterada que fizeram os personagens enxergarem daquele modo e...
-
Você já está bêbado, tentando encontrar soluções fora do filme. É o que eu digo,
se o filme não explica tudo o que se tem que explicar e não fecha os buracos
abertos, não é um bom filme.
-
Então quer dizer que pra você a experiência cinematográfica fica no cinema? Não
existe extensão mental ou inter-relacionamentos com outras artes, com a
sociedade, com a política? Eu posso dizer então que você é um dos piores
expectadores do mundo e se o filme te insultou, é o mínimo que você merece. Digo,
olha só a qualidade dos diálogos, das atuações, olha a liberdade criativa, a
crítica social ao sensacionalismo, às diferenças sociais, à força policial, à
prostituição...
-
Você enxerga demais onde há de menos.
-
E você é cego.
Já
haviam, nesse ponto, quatro novas garrafas vazias sobre a mesa enquanto o tempo
dava a volta em seu próprio eixo. A conversa fluíra, mas fluíra em
desentendimentos e trovoadas mentais. A quinta garrafa chegava quando o mais
magro resolveu continuar.
-
Eu acho que estamos bêbados, mas eu sei que tenho a razão, um homem não pode
acertar tanto quanto Tarantino.
-
E Rodriguez.
-
Não, não vai dizer isso, Rodriguez é um pela-saco imitador desesperado, ele faz
as mesmas coisas em todos filmes, uma cópia de qualidade muito inferior do
Quentin, cada filme dele é uma vergonha.
-
Mas que menina mais dura com os cineastas! Não faça essa cara, foi uma
brincadeira. Os dois tem a mesma formação, fazem a mesma escola de direção, é
claro que um é melhor que o outro, mas o segundo não pode ser desrespeitado por
isso. Aliás, esse filme tem uma ótima direção e é do Rodriguez.
-
Com o Tarantino dando os palpites dele, tenho certeza.
-
Não duvido, eles são amigos, não são? E a trilha sonora, impecável! E os
diálogos!
-
Tarantino, Tarantino e Tarantino. É o mínimo que ele pode fazer em seus filmes,
é o mínimo que espero, e quando um filme com potencial vai ladeira abaixo dessa
maneira, só me resta entrar de luto.
-
Então você gostou!
-
Gostei, gostei até a metade, até a ruptura enlouquecida e lisérgica,
desnecessário, amigo, arrasou minha noite pensando qual seria o verdadeiro final...
-
É aquele, quer final mais perfeito?
-
Aquilo foi um desleixo, um delírio alcoolizado de uma mente cansada, onde já se
viu mudar assim tão bruscamente.
-
Mas é a surpresa que traz o prazer! E as piadas visuais são fantásticas! É uma
grande brincadeira com o público, com os atores, não é pra ser levada a sério.
De um lado temos um filme de suspense magnífico, profissional, à la Tarantino,
de outro temos um filme trash também fantástico e engraçado, também à la
Tarantino embriagado, são linguagens diferente, mas todos, em sua língua,
falaram muito bem e atingiram pontos importantes de qualidade nesses dois
estilos. Veja, além de brincadeira é uma porta a mais que se abre, hibridismo
radical de gêneros e temas em um filme só, imagina o quanto nós podemos
alcançar em uma hora e meia, duas horas, com tamanha capacidade de mudar de
assunto e não deixar a bola cair!
-
Pra mim deixou, a bola escapou da mão, derreteu como um sorvete superaquecido e
muito cansado, assim como eu fiquei quando os créditos subiram. Não consegui
engolir esse filme, é uma porcaria superestimada, conhecida só porque traz os
nomes que traz.
-
Quais?
-
Tarantino, Keitel, Clooney.
-
Rodriguez, Salma Heyek, Danny Trejo, Juliette Lewis, Tom Savini, que fez um fantástico
e bem humorado trabalho de maquiagem e de atuação.
-
Sex Machine?
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É!
-
Grande merda, um paspalhão estilo os três patetas que não faz peso algum na
trama! E a Salma ficou quatro minutos em tela, assim como o Danny, e essa tal
Juliette tem uma sobrancelha muito estranha, que só me agredia, além de parecer
que só sabe repetir o papel que fez em Cabo do Medo, do Scorsese.
-
Não diga uma coisa dessas rapaz, ela é muito boa, apesar de ter os ossos do
rosto um pouco estranhos.
-
E um duplo queixo, quase igual você.
-
Ah, magrelo, fala enquanto pode! Mas fora as brincadeiras, todos os atores
estão muito bem em seus papéis, até nos mais estapafúrdios e caricatos, como o porteiro
do Titty Twister, inesquecível.
-
Isso eu realmente dou meu braço a torcer, mas só dou porque está na metade boa
do filme.
-
Não existem metades em um filme, um filme é o todo, você divide onde não existe
divisão, é quase um crime isso, deveria ter vergonha.
-
Não consigo engolir nada disso.
-
E por que não?
-
Porque não acredito! Foge demais da realidade.
-
Isso assusta, não é?
O
magrela patinava com os dedos na borda do copo. Entre os dois uma pilha de
cervejas que refletia o mais gordo com uma aura espectral e bêbada, os lábios
sorrindo de modo soturno, deformado pelo vidro embaçado da ebriedade. De
repente o chão começou tremer e uma luz pousou sobre os olhos do mais gordo,
que explodia como laser, estourando as garrafas entre os dois.
-
Pois deveria acreditar!
O
rosto deformou-se como destruído pelo mais forte ácido e da boca longas presas
desceram em fileiras e fileiras de dentes, como um tubarão humano. Asas grosas
brotaram das costas, com o doentio barulho de uma folha de papel sendo rasgada,
a pele abrindo para a aberração passar, estourando o véu da normalidade com as
unhas afiadíssimas. O ser que nascera era um misto de tubarão com morcego e
alguma outra coisa demoníaca que gargalhava dentro daquela barriga grande que
inflava, quase estourando, quase arrebentando as estrias que nasciam agressivas
sobre a pele. A camisa jazia no chão, arrebentada pelas asas e pelo crescimento
inesperado daquela barriga, e antes que o mais magro pudesse levantar, os
diques de pele estouraram em sangue e líquidos pretos e mãos em carne viva
puxaram seu ser para dentro daquele monstro milenar que disfarçara-se de seu
amigo naquela noite.
-
Um drink para todos, eu pago! - E dizendo isso, bateu com a mão ébria na mesa de madeira que dançava ao ritmo dos nervosos pontapés do outro dentro de sua barriga.
Muito bom! A regra ética supostamente ainda me proibiria de elogiar um texto de um blog que eu faço parte mas foda-se, está foda. Declaro esta resenha o modelo do espírito do blog! Descontraída, divertida, diferente e absolutamente livre do critério geralmente usado para se definir uma resenha. Dito isso, ainda assim, digo que discordo. Vi Um Drink no Inferno não faz muito tempo e talvez tivesse que reservar uma resenha para ele... no entanto, tentarei ser sucinto no comentario.
ResponderExcluirComo o magro, a primeira metade do filme me deixou de queixo caído, que baita filme! Os diálogos, as cenas, o TARANTINO!!! Cara, eu nunca vi um ator cair tão bem num personagem! Se me dissessem que era o Tarantino fazendo papel dele mesmo eu acreditaria! Fantástico! Os tiques, a neurose, a tensão que o espectador fica no quarto do motel, no trailer após o sequestro da familia... enfim... é foda...
Chegamos na segunda metade... o aspecto do bar era familiar... A atmosfera de motoqueiros, de briga, bla bla e etc... "ok... algo está mudando", eu pensei... e de fato, algo estava mudando... e muito! E como! Não vou dizer que o filme se estragou para mim, mas como não dizer que ele tomou uma curva radical para outra direção? Não me lembro dos grandes diálogos nesta parte, não me lembro da tensão entre a menina e o personagem do tarantino, nem da estranha e confusa vontade de ver os irmãos gecko se saindo bem da situação. Pelo menos não era mais confusa. Os antagonistas da história me deixaram num estar maniqueísta de bem x mal, o que era diferente de antes, com os irmãos representando os dois e nenhum dos dois ao mesmo tempo. Até o atrito no relacionamento entre os irmãos terminou rapidamente, sem muito olhar pra trás... sei que não havia tempo pra isso, tudo estava muito corrido e era pra ser assim... mas... pra mim não estava dando certo... a segunda parte desfilou com uma série de clichès de filmes B de terror, o que talvez seja melhor exemplificado no evento que desde o segundo que se deslanchou a surpreendente reviravolta, todos já sabiam que aconteceriam, que era a reconversão do padre (pastor, sei lá). Padre este que me parecera um personagem tão interessante, agora parecia apenas um artifício de roteiro para a implementação de mais um cliché... e talvez fosse! Não houve muito mais desenvolvimento depois disso...
Não me leve a mal, Um Drink no Inferno é um bom filme, é divertido, rende umas boas horas na frente da tela. Mas não sei se me dá aquela satisfação após ver um bom filme... bom... eles evitaram o cliché supremo no final do filme, aquele do mocinho termina com a mocinha... isso me deixou contente... mas vamos lá... talvez eu esteja levando muito a sério...
Se fosse para dar uma última palavra, eu diria que é um filme que eu recomendaria sim, principalmente pela reviravolta (ironicamente) que não poderia ter maior efeito-surpresa (por sorte eu nao li a sinopse antes de ver). e, para todos os efeitos, os inconformados podem acreditar que os irmãos foram viver na tal praia com a grana roubada e a familia voltou para os isteites sãos e salvos.
O comentário acima foi condecorado com o premio Sr. Comentário. Agora ele não é apenas um comentário, é um Senhor Comentário.
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