Acabo de ver o (aproveitando o clima dos últimos dias) ganhador de Oscar(es) "Um Estranho no Ninho" ou, em seu título original e, cá entre nós, muito melhor, "One Flew Over the Cuckoo's Nest" (Um [ou "Alguém"] voou sobre o ninho de cucos [aquele pássaro, serve como analogia para maluco... ah, vocês entenderam]). Impossível para mim, estudante de Ciências Sociais e com irmã psicóloga, separar o filme do discurso antimanicomial que ronda este universo e que, aliás, celebra seu dia em 18 de maio. Dito isto, vou comentar misturando elementos do filme com minhas experiência pessoais. Espero que a lambança não seja demasiada.
O Personagem Principal

Jack Nicholson é Randle McMurphy, detento que se faz de louco para ir terminar sua sentença no manicômio. Agora, na primeira cena de Randle com os pacientes já sacamos o que vem por aí... o cara chega, muda a porra toda, não sei o quê... É, é basicamente isso que acontece... a fórmula é antiga (mas, pensando bem, o filme também é), mas isso não estraga o filme... O grande diferencial de Randle no manicômio não era sua saúde mental perfeita, mas sua rebeldia anárquica e cheia de vida. Ao longo do filme, vemos essa vida se refletindo nos outros personagens e produzindo a mudança de comportamento, talvez não da instituição, mas pelo menos dos pacientes. Randle McMurphy é o personagem que rendeu ao Jack Nicholson o Oscar de melhor ator... ou talvez seja Jack Nicholson que tenha rendido a Randle McMurphy tamanho... bom... tamanho como personagem... a questão é que por mais que Randle seja um personagem manjado na história do cinema e da literatura, ele é diferente. Honestamente não sei o porque disso, talvez seja o sorriso de maníaco do Jack Nicholson ou talvez seja a doçura com que Randle acaba tratando seus amigos e companheiros de hospício, um carinho velado e ao mesmo tempo muito aparente... sei lá... mas tem algo a mais.
O Manicômio
Quando fui à minha primeira manifestação do dia da luta antimanicomial no ano passado, saí de lá muito diferente. Foi na Praça XV, onde diversos grupos estavam mostrando ou fazendo algum trabalho. Minha irmã e o namorado estavam lá, minha irmã fazendo trabalhos de mosaico com alguns pacientes e quem mais quisesse participar. Falando em pacientes, a presença deles marcou uma mudança bem grande no modelo de manifestação política que eu via desde o início do ano... veja, acontece que antes e depois de entrar na faculdade, eu participei de muitas manifestações e a cada uma crescia a decepção... era ridículo como os supostos interessados dos protestos não estavam nunca presentes... a questão aqui não é a "alienação" deles, mas a pretensão de partidos e jovens universitários de quererem representar alguém que não pediu para ser representado... era frustrante como falavam em nome de tanta gente que sequer os conhecem, muito menos reconhecem. Aí aparece o dia da luta antimanicomial, quando terapeutas e administradores e pacientes manifestam-se juntos em um evento cheio de atividades de integração entre os que estão de fora e os que estão de dentro da questão, há demonstrações dos trabalhos desenvolvidos por grupos e tal, instrução, etc... nada de um homem de partido berrando no megafone frases de protesto incompreensíveis se isoladas, costas viradas para a população... Não... se no protesto das barcas eu não vi nenhum trabalhador deixando de ir trabalhar para se juntar à manifestação, neste eu via dezenas de passantes parando para ver o que era tudo aquilo.
Em um momento, um telão começou a passar um videoclipe de uma música feita pelos pacientes de um certo grupo (acho que era o CAPS da UERJ, mas não posso confirmar). Os psicólogos tocavam os instrumentos e os pacientes cantavam. Esses mesmos pacientes se encontravam lá no evento e, enquanto passavam o vídeo, eles cantavam junto. Nunca vi um grupo de pessoas mais feliz... isso mexeu comigo... imaginei o orgulho que todos eles sentiam de fazer parte disso, desse acontecimento, dessa conquista. Eles haviam feito aquilo e fizeram com o próprio suor. Isso mostra que eles tinham (e tem) capacidade, é a autoconfiança que eles precisam para se integrar na sociedade... e afinal, imagino ser esta a função da saúde psicológica, fazer a integração do paciente na sociedade, para que ele possa ter uma vida, se não normal (no sentido que é dado mais comumente), ao menos saudável, com as implicações que tal palavra traz. A esse propósito, estabelecer uma "função" ou ao menos uma "funcionalidade" ao paciente faria parte do processo de integração.
Tudo isto se encontra presente no filme, mas de forma inversa. Como se passa num manicômio, as críticas feitas ao sistema manicomial de tratamento são incorporadas às atividades na forma de orientação. Assim, vemos claramente e, em primeiro lugar, o distanciamento do médico com o paciente. Não lembro de cena que mais demonstre isto do que a que a enfermeira, ao se deparar com Randle na sala privada berra "STAY BACK!" em claro horror e medo. Não só há o distanciamento entre os dois atores da relação - o terapeuta e o paciente - há também a desumanização de um de forma que o tratamento se diferenciará completamente do que seria dado a uma "pessoa normal". Por isso o medo da enfermeira. Não se sabe do que aquele ser é capaz, não se dá uma humanidade para ele, sua identidade permanece apenas e somente como "o doente mental". O isolamento deste "doente" é talvez a mais frustrante e alarmante característica deste símbolo manicomial. Como pode o paciente ser reintegrado à sociedade se ele é tratado como algo externo a ela? Justamente aquilo que se evita fazer é o que se faz e somente aquilo. Uma vez que o espectador percebe - como percebe Randle, após saber que só através do aval médico ele sairá de lá - que os pacientes se encontram num ciclo vicioso de reafirmação da psicopatologia e isolamento social através do próprio tratamento, que os pacientes nunca sairão do manicômio, mesmo aqueles que estão lá voluntariamente, pois a ideia da psicopatologia e da sociedade como algo externo a eles ("Não estou pronto ainda", disse Billy) já são ideias que estão enraizadas neles próprios e não apenas na instituição manicomial... uma vez que o espectador percebe isso, instala-se o desejo de fuga. Bom... pelo menos comigo isso rolou... precisava que aquelas pessoas saíssem dali.
Creio que a cena mais simbólica deste processo de encarceramento psicopatológico dentro do manicômio seja uma do Billy que, após uma noite com uma moça, sua gagueira - manifestação física de algum trauma psicológico ou seja lá o que for que despertava sua depressão e vontade suicida - tinha sumido. Com o confronto da enfermeira Ratched, - a puta mais desgraçada que já vi no cinema - sua gagueira retorna e... bem... o resto é história... Claro que Ratched filhadaputamente usou o gatilho depressivo do Billy (a mãe dele - eu sei, eu sei... cliché) contra ele ao invés de reconhecer a melhora do paciente. Isso porquê, claro, ela colocava a moral pessoal acima do profissionalismo e etc... e era uma megera odiável. Mas a questão é a melhora do paciente não ser a prioridade ou acho que nem isso... não ser sequer reconhecível através do processo manicomial.
O entorpecimento contínuo com o uso de remédios e tratamentos de choque e a fatal lobotomia são modos de berrar, eu disse BERRAR que a psicopatologia é incurável (uma vez louco...) e que o paciente deixou de ser paciente no momento em que entrou na instituição, que não é nada além de uma instituição carcerária, onde, mais que isso, os internos são tratados como completos inúteis, incapazes de fazer nada, completamente desencorajados a se expressarem... Mais do que um cárcere físico, o manicômio representa uma prisão da alma, e é nesse estado morto dos pacientes que Randle chega lá.
O Antimanicômio
Randle McMurphy é o transgressor... aquele que acabará com a ordem manicomial e questionará suas práticas. Desde sua chegada, quando dado o remédio (sem nem ao menos ter recebido um diagnóstico objetivo antes! - ele estava sob observação), ele pergunta o que é. Sem responder à pergunta, a enfermeira apenas ameaça fazê-lo tomar o remédio à força. É claro que ele não toma, guarda o remédio na boca e faz piada disso.
Randle, o anárquico cheio de vida acaba, mesmo que sem querer, mesmo que só visando seus próprios objetivos, contagiando o resto dos pacientes com sua vida e jeito enérgico de ser. Os pacientes, como Randle, começam a questionar o tratamento dado a eles. Se não saem completamente da norma manicomial, ao menos iniciam um processo visando isso... Talvez Billy Bibbit tenha sido, com exceção do Chefe (chegaremos lá), quem mais se aproximou da possibilidade de "cura" (ou ao menos de aprender a lidar com o sei lá como se chama que ele tem) através do "processo antimanicomial" liderado por Randle. Claro que quando Billy chegou lá, para a frustração geral, a enfermeira Ratched interveio.
Randle, o anárquico cheio de vida acaba, mesmo que sem querer, mesmo que só visando seus próprios objetivos, contagiando o resto dos pacientes com sua vida e jeito enérgico de ser. Os pacientes, como Randle, começam a questionar o tratamento dado a eles. Se não saem completamente da norma manicomial, ao menos iniciam um processo visando isso... Talvez Billy Bibbit tenha sido, com exceção do Chefe (chegaremos lá), quem mais se aproximou da possibilidade de "cura" (ou ao menos de aprender a lidar com o sei lá como se chama que ele tem) através do "processo antimanicomial" liderado por Randle. Claro que quando Billy chegou lá, para a frustração geral, a enfermeira Ratched interveio.

É o método de terapia que Randle aplicava (inconscientemente, claro) que bota em julgo o modo de ser do manicômio, de dentro para fora. Este que representa este espírito antimanicomial que transformou os pacientes e, de uma forma ou de outra, o próprio hospital psiquiátrico, mesmo que, novamente, a instituição tenha se mantido inalterada. Tem uma cena muito interessante que se passa quando eles sobem em um barco no cais. Para se apresentar, eles tomam o papel de doutores. Essa inversão de papéis, de função e, mais importante, de hierarquia, mostra a ordem manicomial subjugada pelo espírito antimanicomial subversivo.
O Chefe Bromden
Brilhantemente interpretado por Will Sampson, este personagem por si só já merece uma seção só dele. O Chefe é um imenso índio surdo e mudo (que revela alguns segredos após estabelecer uma silenciosa amizade com o protagonista). É ele, na minha opinião, o fio fundamental do filme, aquele que conduz o andamento das coisas e, secretamente, um protagonista nas sombras de... bem... de todo o resto. O Chefe é a timidez e a impotência presentes num potencial imenso. É a autoestima encolhida de um corpo enorme. Ele representa o indivíduo no manicômio e seu processo de libertação pode muito bem ser extendido a todos os outros pacientes, só que de forma diferente. Acompanhamos seu... desabrochar (perdoe a péssima utilização da palavra) ao longo do filme, de um poste, uma cenografia enorme, até um personagem bastante relevante, que conseguimos nos relacionar e simpatizar, até a cena final do filme, cheia de simbolismos e que representa muito no universo da trama. Bom... pra mim, pelo menos...
O Chefe será o espírito daquele manicômio e quando ele diz que já está grande o suficiente, é porque os demais pacientes também se sentem mais dispostos. Randle ajudou o chefe a interagir, deu confiança a ele, assim como fez com o restante dos internos...
E isso nos leva ao título do post... com o isolamento dado aos pacientes, eles se tornam estranhos a qualquer outra coisa, são estrangeiros ao mundo e é justamente este outro estrangeiro, este recém-chegado que não consegue se adaptar ao mundo externo (fora preso diversas vezes!) que transforma este inferno, este presídio da alma, em um ninho... é ele que consegue trazer conforto, acalento, pertencimento aos internos e por isso "um ninho para estranhos"... porque aqueles que eram tidos como algo diferente, se encontraram em algo que poderia ser tido como deles e... semelhante... que os aceitasse...
Ok, se até agora não dei nenhum grande spoiler, é aqui que começa. Você que não viu o filme pare de ler ou continue, mas foi avisado!
O Fim
E é assim que matam Randle. Após o suicídio de Billy pelas mãos da enfermeira Ratched, após o ataque (extremamente justificado) de Randle à mesma, realizam uma lobotomia nele, o "diminuem", o anulam, o matam. E é por isso que o Chefe, agora grande, forte, confiante, graças ao seu amigo, o sufoca. O Chefe dá-lhe a liberdade, assim como o faz com os demais na cena final do filme, ao libertar a si mesmo. Pois se é ele o grande fio condutor, o grande espírito e alma daquele hospital, sua liberdade representa a liberdade dos outros. A forma como olham animados a fuga do Chefe, a forma como, apesar da morte de Randle (e, se eles ainda não sabiam, ao menos do sumiço dele), a esperança continua (ou voltara) a brilhar em seus olhos... A mudança estava feita e essa era a prova maior disto. Os pássaros, os cucos, estavam prontos, já podiam voar do ninho.
Deixo aqui meu respeito e admiração pelo ator Will Sampson. Que, assim como seu personagem, ele tenha encontrado a liberdade depois da janela.