Ta aí a primeira resenha suicida do
mundo. Vou te explicar, fantasma leitor.
Poucas vezes
em minha vida posso dizer que me aproximei tanto da morte. Poucas vezes posso
dizer que entrei em contato direto com minha existência, capaz de compreendê-la
e soltá-la feito pássaro nesses meus labirintos e abraçar assim, em sorrisos, a
atormentadora morte. Nesses momentos únicos, ímpares e paradoxais, a morte
torna-se bichinho de estimação, um cachorro amoroso que nos lambe a face e nos
molha em seu amor. A morte vira namorada, dá-nos a mão e beija-nos a boca e nos
faz atingir o maior gozo já alcançado pelo humano frágil corpo. E ficamos lá,
nós dois, eu e a morte, a valsear pelas ruas confusas e acinzentadas, eu pronto
e puro para ser abatido, ela só a brincar comigo, pois nunca me ousou levar.
Assim senti. A última vez, três anos atrás, era um dia nublado e vazio, meus
pés no chão cinzento da cidade, nos ouvidos o Réquiem do Mozart, no corpo um
prazer etéreo que só a musica pode vibrar. Ali eu pensei imediatamente que
poderia morrer facilmente. Tão leve que era capaz da gravidade me refutar, do
Sol me imantar, do corpo pulverizar-se naturalmente. Alguma alquimia poderosa e
antiga acontecer ali, me metamorfosear em bando de pombas brancas,
dentes-de-leão ou apenas cinzas ao vento...
Ali nada temia eu, abraçando Mozart em sua morte e velando seu corpo.
Poucas vezes tive essa experiência pré-mortem e post mortem. Hoje, depois de
tanto tempo, eu tive, ao ouvir o novo disco dos amados Pitanga em pé de amora.
Morri completamente e renasci poderoso no fim de cada música. Cada célula
sentindo as potências musicais e vibrando tão forte que não aguentavam a própria
vida. Era isso meu corpo: show de fogos de células confusas se implodindo de
prazer. Morri de dentro pra fora, inverti-me, e ao fim de cada experiência me
renovei. Esse álbum, amigos, nos dá a chance de ser fênix finalmente.
Pontes par Si.
Sem dúvidas o nome foi tão certeiro quanto cada música com que esses moços e
moças nos presenteiam. Pontes, tantas pontes que confundem. E dentro do caos
reina o sentido de ser e o sentido de existir tantas pontes e atalhos para Si.
Nunca ouvi algo tão maduro, no movimento natural da lagarta se metamorfoseando
em seu casulo até a libertação de suas asas. Nunca presenciei uma tomada de
identidade e musicalidade tão afiada e, sim, afinada. Refinada. Sem fim. Enfim,
nada pode explicar em palavras essa mutação tão natural dessa trupe musical,
pincelando essas notas lindas de dó à (pontespara)si. Falo aqui, em minha
pequenez de conhecimento, que esse álbum e essa reunião de amigos com a musica,
toda essa brincadeira poética, esses trava línguas instrumentais, todo esse
todo é o melhor resultado da musica nas minhas ultimas descobertas. Os Hermanos,
Camelo, Amarante, Graveola, O Terno, Os Mulheres Negras, Orquestra Filarmonica, Cícero, Móveis
Coloniais, e mais, esses tão grandes, tão bons, tão únicos em suas idiossincrasias
e tão unidos nessa mesma vibração de fazer pulular a boa música em nosso
cenário musical difícil são pitangas em pés de amora. São diferentes,
apontados, são destacados, são deslocados. Somos assim todos nós. E por sê-los,
para mim, é esse o álbum que maior se destaca na história dessa nova música que
vem nos inundando (perceba: inundando, mas não afogando. Afinal, no prazer me
inundo facilmente).
Eu aqui, sobre
meu troninho de nada, no meu tamanhozinho pífio, me cubro com esse tecido tão
bem costurado. Essa música madura e ecoante, que gruda e desgruda postas de
nossa carne, nos põe pra sangrar. Temos que sangrar, senhoras e senhores!
Aceitar nosso sangue, senti-lo e toma-lo! Tomar nossas misturas, nossos
líquidos confusos, do mais árido ao mais cremoso, e nos entender inteiros.
Temos que fazer essa endoscopia musical, esse exame de próstata sentimental para
nos sentir cada musculo, cada fibra à flexionar, cada resposta natural ao todo.
É isso que me senti, aliás, uma caixa de bateria batendo sozinho a cada música,
extremamente afinado com todos os tons de Pontes para Sí. Uma impossível caixa
de bateria afinada em todos as tonalidades do mundo. Devo isso, essa percepção,
a eles. Essa percepção que devemos ser multi-instrumentais, extra-tonais,
transcendentonais. Revolu-de-dó-a-si-onários.
E aqui, eu
observador com catarata nos olhos, confuso nessa floresta árida de poesia e
internos labirintos, eu que tão pouco sei e tanto ouso falar e gritar,
pequenininho nos pés dos grandes, como uma criança, um bebê-pulga, posso
afirmar em toda minha falta de autoridade em qualquer assunto (e aliás acho que
é tão importante isso que vou dizer a seguir que vou botar em um parágrafo só
para ele):
Tem certas
coisas que merecem entrar para a História e a Identidade Musical de uma Nação
(e perceba quantas maiúsculas, isso é realmente importante, leitor). Coisas
como a Tropicália, a Bossa Nova, coisas Revolucionárias assim, marcantes
cicatrizes belas. Pra mim o álbum ao qual ouvi hoje merece estar marcado para o
futuro, porque é de tamanha excelência e profundidade que raro se vê e quase não
se vê mesmo ali existindo. E em tudo toca, porque bebe direto dos nossos pais e
dos nossos avós, na linda complexidade da bossa nova, do choro, do samba, do
frevo, das marchinhas, coisas estritamente brasileiras. Passeia afinadamente
entre todos esses mundos, brinca até com o funk, aceita a miríade social e
musical brasileira. Fala do todo mirando nessa partícula minúscula e eternamente
complexa que é o “si”, o cada um. É de cada um que se forma o todo, cada célula
da nossa comunidade (veja, a própria palavra nos diz: comum-unidade).
Vamos morrer
juntos, amigos. Morrer musicalmente, de dentro pra fora, abraçar esse vento
sólido que nos toma. Vamos ouvir e aceitar essa possessão, beber dos exorcismos
musicais. Sintamos na boca escorrer a excelência e um aplauso enorme à
esperança! Uma ovação aos dedos e às bocas, às mentes, às poesias, uma salva de
plumas e palmas tão grande que tenham a consistência de um cobertor e que cubra,
enfim, nossos artistas. Artistas que devem ser sempre, fervorosamente abraçados
e que precisamos sempre mostrar o quanto são importantes. Porque importantes
são, por serem um outro capaz de nos fazer entrar em contato com nosso eu. Por
serem, enfim, nossas pontes para si.
E não vou mentir, fiquei com invejinha dessas músicas tão bem arranjadas, poetizadas, cantadas, feitas em si. Quem sabe esse eu com minhas músicas tão quebradiças e engatinhantes chegue um dia nos pés desses senhores e senhoras? A mim basta o sonho, as asas eu desenho depois. Do mais, vale a pena. Acredita em mim. Acredita neste louco apaixonado, vai. Não vou te decepcionar. Vamos lá.